mardi 23 avril 2019

"Daemones Effugate"*

Daemones ampleximini
Nikolina Petolas, Faded



Tudo começou quando aprendi a ler e, lendo, aprendi a reconhecer diferentes vozes. Até que eu aprendi a escrever, e foi assim que eu comecei a ouvir a minha própria voz.

Escrevendo, eu aprendi o verdadeiro sentido de ter uma língua - essa, que é única de cada um e, quase sempre, inalcançável. Escrevendo, eu finalmente tornei-me capaz de entender essa minha língua. Estranha, alienígena, intraduzível. E, agora, eu e minha língua nos entendemos como apenas nós podemos, numa sincronia inigualável, embora opaca para qualquer terceiro. Ai, os terceiros! Se ao menos pudessem dar-se conta de tudo o que se enganam! Mas seria esperar demais...

Escrevendo, eu fui fazendo mergulhos tão, mas tão profundos – embora zonas abissais ainda virgens aguardem-me em profundos ainda mais profundos -, que, malgrado o contentamento passageiro que talvez encontre no comunicar-me, esses pontos de encontro entre a minha língua e a do outro parecem-me agora sempre rasos demais. Insossos demais. Falsamente transparentes demais. E, perdida nesse oceano de gentes cegamente crentes na transparência, dominar minha própria língua permitiu-me dominar-me a mim própria. Até o momento fatídico em que, escrevendo, eu, um dia, descobri-me a exorcizar demônios.

Mas esses espaços vazios aborreciam-me, irritantes como um zumbido no silêncio do sono. Tantos exorcismos fizeram de mim calabouço em um campo aberto, e os muros que caíram no lado de cá os meus olhos passaram a enxergar no lado de lá. A minha compreensão me dera liberdade. Mas liberdades não se sustentam quando só se pode caminhar nos corredores das prisões dos outros.

Eu continuava só.

Escrevendo, eu despencara no paradoxo que é  povoar-me isolando-me mais, aproximar-me distanciando-me ao infinito, libertar-me sufocando-me em um labirinto inescapável. Eu pude descobrir a resposta a muitos enigmas, apenas para dar-me conta de que as chaves dos tesouros que eu descobri não estavam em nenhum lugar dos arredores. Longe demais do meu alcance.

Então ergui com minha língua um espelho, e tornei-me a voz que me replica quando murmuro no escuro. Um ciclo vazio, no final das contas: tornar-se mais para ser menos. Até que, escrevendo, vi-me face a face com uma nova verdade: eu já não tinha ganas de me exorcizar os soi-disants demônios. Não mais. Que, demoníacos ou não, diferentemente de todo o resto, meus demônios e eu guardávamos esse pequeno algo em comum – o algo mais crucial: meus demônios e eu, nós falávamos a mesma língua.

Rendi-me.

E foi dessa forma que, exorcizando, escrever ensinou-me a desistir dos exorcismos. Como Aladdin ao Gênio da Lâmpada, eu libertei os demônios todos, e trouxe-os para mais perto. Menos como fantasmas, mais como amigos. Menos como o tal diabo a aproveitar-se de nossos vazios, mais como o Grilo Falante a lembrar-me do que é essencial.

Escrevendo, permiti-me ser alguém que eu não sabia até escrever-me. Escrever rompeu meu casulo. Escrever empurrou-me precipício abaixo. Escrever desmistificou as grandezas. E, hoje, quando olho para o lado antes vazio da minha cama, eu enxergo meus demônios dormindo comigo. E está tudo bem.

~:~




* Mateus 10, 8

PS: Feliz Dia Mundial do Livro.

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