samedi 14 février 2015

Meia-noite



Eu me lembro de gritar no escuro - baixinho.
Eu me lembro de cobrir a cabeça antes de a luz se apagar.
Eu me lembro de pular na cama, de deslizar no chão sujando as meias coloridas, da luz laranja da lanterna no teto cor-de-rosa de nossos palácios e de nossas velhas grutas.
Nós esticávamos os braços para saber em quem cabia mais amor, e contávamos os abraços em milésimos, para nunca estar atrás, e no canto da mesa da cozinha ficava aquele caracol em seu abrigo de algodão verde e macio, muito antes de sua hora de levantar. Pela noite, alguém me puxa no sono: está acordada? Eu não era grande o bastante para me importar com as horas.
Daquela vez, insone e medrosa, crescemos um bolo, e enquanto a casa dormia nossas quatro mãos folheavam livros amarelos com receitas de passado. Meia noite já passara - há muito extrapolado o meu limite real - quando o cheiro doce perfumou o sereno.
De outra vez, o bolo a seis mãos literalmente regado a guaraná foi nossa festa particular de boas-vindas.
Então partimos.

Houve um tempo em que eu via sombras através do vidro da porta e disparava a correr até cruzar a garagem. Amanheceu e eu já não me dependurava, meus pés roçavam o chão de qualquer modo. Os eu te amo's passaram a Bom Dia's, e estes a Boa Noite's, quando virávamos abóbora em troca de um beijo, sem saber que tantas são as vezes que se vira abóbora quantas são aquelas em que se apodrece. O último eu te amo caiu com a décima segunda badalada.
Fomos time e adversário, trancamo-nos para fora e expulsamo-nos de casa, e também nos enlaçamos dentro. A hierarquia esteve sempre clara a estabelecer as fronteiras dos mundos que alimentou, e era infalível em saber em qual deles as coisas precisavam ser ditas para serem entendidas.
Todos os risos acabaram em choro, como deve ser. E todos os dias juramos inimizade eterna. Se um dia as mãos se davam para caminhar, como em soldas invisíveis, cada vez mais abandonamo-nos nos cruzamentos do outro lado do morro. Atravessávamos a rua e então estávamos sós: muito lentos, muito velozes. Para onde foi a sincronia?
Fomos, no entanto, muito discretos, não desandamos a correr pela rua, não nos prostramos a esperar no meio-fio. As vitrines eram constantes bloqueando nossa visão - nosso engajamento compartilhado quebrado. Tão avidamente lustradas, e ainda assim tão opacas.

Será que tudo para na sede? No vazio? Os Boa Noite's acabaram quando as noites se encheram, restou apenas o ruído da rua quando as canções de ninar acabaram. Quando a menina começou a fazer as próprias tranças, viu fios brancos. Quando o menino soube ir à escola sozinho, receitas médicas inundaram suas prateleiras e afogaram todos os carros. Quando finalmente todos tinham voz, não havia o que ser dito.
Como pode haver convenções de afeto? O medo será tamanho que não permite o amor além da insegurança, cercado de maldições e luas cheias?
O bolo doce daquela meia-noite agora tem moscas e murcha a olhos vistos. Perdemo-nos com a inocência. Nunca soubemos amar de graça. Nunca aprendemos a sorrir a despeito da guerra. Abóboras encantadas, apodrecemos em nossas vestes de gala toda meia-noite. "De cada vez é para sempre", diz Graograman.