dimanche 30 avril 2017

Sobre (cre)ser monstro I



(As palavras, no entanto, pararam de importar...)

Eu me lembro das fases de meu ateísmo, de como as palavras pareciam não mais ter sentido, por menos capaz que eu fosse de contradizê-las.
Como estar certa contra tantas multidões?
Como estar certa contra tantos séculos?
Como estar certa contra mim própria?

Eu me lembro das fases de meu ateísmo, de como ele, de início, fora somente sensações. Ou, talvez, é claro, dessas suas ausências.
Culpa minha,
Da minha frieza,
Desse meu eu quebrado que nunca soube sentir das cousas.
Culpa minha,
j'était trop jeune pour savoir l'aimer*,
e a transcendência - eu me dizia - viria como a sabedoria da idade.

Não vinha.

O tempo escorria.
O tempo me atropelava.
O tempo me esfaçelava as chances de experimentar daquela magia.
Eu repetia as preces, e as palavras me eram duras na boca. Eu recitava um perdão agoniado e confuso, e implorava a uma criatura que eu não enxergava perdão por não enxergá-la.
Não é minha culpa - eu lhe dizia.
Mas era.
Eu sabia que era.

Nunca, nem por um instante, pensei se um qualquer algo pudesse estar errado no que me disseram
para sentir, e seguir, e crer.
Eu era o problema.
Eu sabia que era.
Eu era tudo errado.
Eu sabia que era.

E ninguém me podia salvar de minhas próprias ferrugens e todos ficariam do lado de Deus e deus não amava descrentes e ele me mandaria embora com uma cruz na testa.
Eu não queria ser mandada embora com uma cruz na testa, mas, para tanto, precisavam acreditar
- todos -
que eu era como eles.

Eu me lembro das fases de meu ateísmo, de como sempre foi sobre os outros. Sobre ser um monstro aos olhos dos outros. Sobre eu, errada, visível aos outros.
Eu não sabia o que era que havia de errado com monstros, sabia apenas não querer ser um.
Monstro.
E todas as noites eu rezava
Sete Ave-Marias
Por uma boa
Morte.

Amém.




*SAINT-EXUPÉRY, Antoine de.  O Pequeno Príncipe.