samedi 26 décembre 2015

Antigoon

Antwerpen, 25.12.2015
Natal é uma mesa e cadeiras vazias
É o peito ocupando as ausências de há tempos
Um fogão que não tem cheiro de condimentos
Um sofá com a capa bordada ainda fria

Natal é a inércia face à melodia
São os olhos brilhando com o esquecimento
São as pedras da rua sendo monumento
A voz muito sumida para a cantoria

A igreja é sem luzes, a praça é escura
Aqui nessa clareira a lua estende os braços
E o silêncio abriga dessa selva dura

Surge um homem sem face, os olhos ficam baços
Natal são seus solfejos que a noite perfuram
Onde o corte do vento é o que há por abraços.

mercredi 14 octobre 2015

Estocolmo

Solidão, Vanni Jung Stahle
Todos os lugares o ameaçavam com a velocidade, e as pessoas que rolavam sem cessar atropelavam a música que trazia. Seu mundo era uma besta voraz e seus bolsos tornavam à casa sempre mais vazios. Vez ou outra se perguntava como é que ao fim de cada dia não havia mais do que poeira em sua mochila, quando a cada manhã, sob a mesma monotonia, ele a estufava de tons e notas para sobreviver mais aquela vida.
Hoje é um dia qualquer e novamente sem pensar lançou seu fardo às costas. Nenhum sinal aberto, nenhuma passagem livre, nenhum corredor vazio, ele apenas segue a fila para uma viagem que não planejou, cortando filas, pulando cercas, ultrapassando pelos vãos pois que tem pressa de tornar ao pó no fim dessoutro dia. Ele... ah! Ele adora ser devorado!

É preciso deixar de ser pedra, tábua rasa de um deus tolo. Migalhas não são coisa que se coma quem almeja as ondas. O perigo de flutuar, é evidente, é estar à mercê das correntes. Não se joga ao mar quem não nem pernas para nadar - ele não consegue conceber. Do casulo quente saem quais borboletas todos aqueles que não sabem ter braços - que não sabem ter asas. É tão inútil ter olhos.

Ele furou outra fila. Do ônibus, da rua, do sinal. Ele chegou antes para poder esperar. Ele é incapaz de apreender o paradoxo de se esmigalhar para edificar. Todas essas morais... Eram apenas letras que as gentes aceitam para não parecerem desentendidas. Ao menos se... Parou. Virou seus sonhos de cabeça para baixo até esvaziar a mochila na calçada. Seus poucos centavos nunca a tocaram, esfarelaram-se na saída.
O que era real?
O tempo era câmera lenta, e ele não parou para vê-lo. Onde estava, pôs-se no chão e cavou-se. Não poderia dizer qual dos sopros levou o órgão vital. Só sabia que não se constrói uma vida com pedaços. No entanto, o que resta de inteiro?
Sem mover-se, fez-se a noite, e não esperou nem desesperou. Renunciou. Razões não há para caminhar, razões não há para voltar. Ele não entende esses que dirigem sem abrir os olhos. Ele não sente mãos guias nas suas costas. Ele duvida de quem sente. Do que funciona. Ele duvida da transitividade do mover. Ele duvida da intransitividade da mesma forma.
Mas hoje ele tem o destino das coisas quando não se as olha. Como seria cair bem no meio do jogo? Ali no escuro ele sente o mar quente que o afogara um dia e o ama com palavras. Uma roda qualquer torceu os sonhos que jaziam na calçada depois que ele se foi, desapossando-se envergonhado de suas migalhas edificadas.
Encarou os ramos ondulantes à sua frente e soube ser o único caminho. Preferiu ficar e se queimar no mar. Razões não há para entrar
na floresta.

jeudi 1 octobre 2015

Set fire to the sky


 É uma lâmpada sangrenta a filtrar toda a nossa fotografia através de seu olhar límpido do bruto e a sobriedade das mortes que lhe prenunciam. Mente frieza e caos enquanto pinta o universo de calor traindo-se a si e à sua fraqueza.
Nunca além do óbvio, jamais além do que supõem, os olhos incham e choram excreções do último pedido, oram pelos pecados que cairão sem perdão e pedem misericórdia pela miséria que escolheram ser. O chão se abre como um Armageddon e é tarde demais para um último fôlego quando o mar deságua fundo em seus pulmões. O seu deus se banha e perfuma e lustra, e não ouve seus clamores. E nem se importa.
Porque o sangue é revigorante, e tão doce.
E onde o olho desse furacão? Onde a boca dessa sentença? Cobriu-se em véu de pudor. Covarde é em seu desprezo! A vista turva difusa nos véus, solução perfeita em que se oculta para o curto alcance de olhos mortais em mares nebulosos e estéreis. Estáticos.
É.
As suas bocas dizem morte, a sua, no entanto, rebate Mãe. Um sopro sorridente, um sorriso encarecido de quem tem o poder de apagar todas as luzes. Não o faz. Se por cima os colapsos A diminuem, curvada, suas raízes leva e os suga com cordões umbilicais.
As suas bocas berram ASSASSINA, e ela, no entanto, chora Matricidas. Em maquiagem rubra, encarnada, explode seu rubor em ondas oceânicas. Do alto impõe-se e cala unanimemente e pulsa. Sistólica e diabolicamente cospe a seiva vital em cada rosto (in)crédulo e se retorce em si como um fruto gigantesco, púbere, com sede de vida. De bebê-la e vomitá-la. Escorre-se viscosa enquanto todos, a seus pés, esbugalham-se e incham, vazando-se de seus próprios poros, e dissolvem-se para uma suposta glória.
Mãe. Dói. Dói florescer e parir tantas Terras e Via Lácteas e átomos diminutamente infinitos. Dói que a morte tome o caule enquanto broto, e se mostra mais que o nascer. Dói que seus olhos tolos, seus medos ingratos, encerrem-nos em cubos de lâminas prateadas. Dói que todo meu sacrifício evanesça.

Bem fizeram os Pais: O universo é vão.

dimanche 6 septembre 2015

The Last Round

"I want you to hit me as hard as you can." [The Fight Club]


David Mack

LET THE FIGHT BEGIN
Depois de bons três quartos de hora, ali estava ele, sobre seus pés, o rosto a poucos centímetros do alvo, observando-o fixamente com olhos que não são os da cara. Ereto, os braços relaxados, as pernas entreabertas. Era provavelmente destro, tendo perna esquerda um tanto significativamente avançada. As pontas dos dedos experimentaram o corpo imóvel, quase como numa carícia, e ele deixou aquela aspereza penetrá-lo como quem medita. Ele poderia estar tocando sua amante, não estivessem seus dedos se fechando frouxamente. Apenas o traía o peito. Apesar dos olhos mortos, seu peito subia e descia profundamente, e até mesmo as pedras pareciam vibrar à sua pulsação.

Por dentro, ele queimava.

Foram três quartos de hora para a reação se pôr finalmente em movimento, e muitos quartos de semana, de mês, de vida, em fogo brando, acumulando, guardando, engolindo a acidez da bile que não sabia digerir coisa alguma daquilo. Uma vida em fogo brando. Odiando.

Seu último piscar de olhos vem em câmera lenta. Como em uma dança, seus pés recuam, seus braços se enrijecem e levemente se vão flexionando, colocando-se à frente do corpo, levando os pulsos à altura do rosto. Gira os dedos, estralando-os, pequenas bombas para as silenciosas margens do lago. A cabeça começa a traçar seu semicírculo, os olhos percorrendo o chão e erguendo-se novamente, sem hesitar, os cotovelos correm para trás em um arco, e os dentes firmemente encaixados agarram seu fôlego.

Que a luta comece.

Sem palavras mágicas, cajados ou braços abertos, o mar plácido se fende e estilhaça antes de poder estremecer. As águas arrastadas como um lençol acertado por um projétil. Carne e couro disparam. Os olhos se apertam quando o corpo não recua nem desacelera. O choque o atinge antes mesmo do contato.

À parte o tremor, não mais do que pele esfolada. Fraco!
Vendo os nós dos dedos firmes e a pele sã, aumenta o ímpeto, libera a força, e agora, mais veloz, não se vêem seus dedos dobrando-se novamente antes de serem parados pela rocha que não os repara. Cega. Surda. Urra.

O cotovelo está de novo recuado, agora mais longe do corpo, o tórax mais curvado, o braço oposto colocado à frente puxa com força e gira o corpo com vigor crescente, furioso. No terceiro choque, o couro rompe. A seiva se derrama numa explosão vermelha e quente. Naquele mar rubro, a tensão se rompe, sobrevém a respiração aliviada, a carne ofega e sua, quase engasgando como um náufrago finalmente liberto. Aberta em rasgos doces e úmidos como uma flor inerte expulsa da semente. Vibra.

Um segundo imóvel, punho e rocha são um, conectados por veias invisíveis, o mesmo sangue a ambos banhando. Os lábios secos dele se curvam, e ele os umedece com a ponta da língua. Dois segundos, e é como a vida entrando nele. Três segundos e sua cabeça gira, ele se sente ébrio.

No quarto, o jogo recomeça.

Os dentes ficaram à mostra sob a testa franzida. A cada golpe, sua pele se escancara mais e seu sangue derrama. A dor faz seus olhos fechados, e ele os abre de volta, assim como força seus braços e mãos a despertarem do entorpecimento e do estremecimento que seu cérebro os impõe. Cada nova mancha escarlate o arma com mais energia e tudo o que ele quer é enterrar-se na rocha com mais força, com mais força, mais força.

Mais força.

Seu torso girando, indo e vindo, os braços em cadência agora perfeita, mesmo nos instantes em que parecem vacilar, prestes a jogarem a toalha contra o corpo que, irredutível, os desafia a continuar na dança.

Macabro. Sádico. Embriagado. Louco. Ele já não pensa. Toda a lenha de sua fúria vira um borrão de sangue. Ele sente algo se trincando - algos. Prossegue, porém, com a violência de um possuído, investindo contra a parede insensível. Seus urros já não se ouvem, ecoando sob o arco da ponte. Nem as vozes que o perturbavam, as risadas, os sussurros, os rostos nos ônibus, os corpos nas ruas, as flores nas igrejas, os abraços ensaiados, os sorrisos de batom, os gritos e os silêncios, as multidões e os desertos, Tudo aquilo que o deixara cego e em chamas cai agora no chão com um silêncio assustado enquanto ele se bate numa batalha desigual.

Os pés balançam e os joelhos vão deslizando para frente, lentamente, como uma folha ao vento. Tocam o chão macio surdamente, e ele deixa sua testa bater-se suavemente contra a rocha pegajosa. As mãos que não sente fazem tremer-lhe o corpo inteiro, e ele não consegue respirar o suficiente. O peito cedendo. A garganta arranhada. A boca engolindo ruidosamente mais ar do que conseguia respirar. Ávida. Desesperada. Agoniada.

Uma onda retorcendo-se dentro dele, ele dobra-se sobre o próprio ventre e vomita todo o seu estômago vazio. Então, como um lembrete de que o pior ainda virá e que o show apenas começa, vêm a dor, a náusea, muita dor, e lágrimas.

O fogo de ódio que emanava de seu corpo dilacera-o agora mais do que nunca. Ele quer vomitar a si mesmo para dissolver-se no lago cristalino que não parara para apreciar seu drama. Aos poucos ele se acomoda na terra em posição fetal. Sem forças para os espasmos dos soluços, lágrimas e baba caem em torrentes mudas. De repente, ele sente frio, mas só o desespero o abraça. Nenhum braço quente, nem uma pele doce e morna ao alcance de seu chamado sem voz para atar seus braços e salvar suas mãos.

Mergulhando na inconsciência enquanto seu corpo se desliga e por fim cede, tenta sussurrar. É tão bom sentir de novo. Mas, na sua dor, seu medo e sua agonia aterrorizantes, não consegue mais do que gemer, e tenta esconder dos olhos a massa disforme e aberta que um dia foram suas mãos. Enquanto ele ainda pode ver o suficiente para se incomodar.

Fight Club 2, Comic Book

jeudi 13 août 2015

Cabides

Eu sei, eu imagino como seja abrir a geladeira às sete da manhã e ver apenas um litro de leite vencido, ver talvez nada. E você vai abrir a gaveta e verá apenas formigas sobre seus farelos, você, que não come há três manhãs.
Eu sei, eu sei que são mais de três. Eu sei que há anos você se retorce de fome, e que nem suas vísceras são mais suas. Que hoje, quando se olha no espelho, você enxerga as ausências dentro de você, os corações que não mais estão.
Eu não tenho sobremesa para você. Não há açúcar que afrouxe sua fome, eu sei. Não vou eufemizar sua agonia. Às vezes eu me pergunto se você sente abortos a cada vez que seu estômago ronca, e em meus sonhos eu te vejo olhando o chão ao redor de seus pés a procura do sangue.
Frankenstein... É bem o inverso, não é? Muitos feitos um. Mas, você... como é viver em pedaços? Eu não sei, eu absolutamente não sei, mas procuro entender quando, da janela do meu prédio, vejo a luz de seu apartamento se acendendo, do outro lado da rua, às 3:47 da manhã, ou quando vejo seu vulto com olhos fixos nas prateleiras de Kinder Ovo do mercado. Você, que não tem nem arroz e feijão. Nem mais aquele miojo das seis da tarde.
Eu sei como é ver Setembro chegando, o inverno acabando, e ainda assim sentir os dedos entorpecidos, e ver o tanque enferrujado e amarelado esquecido no canto da parede, porque não há mais meias sujas de patinação. Sujas ou não, ao menos havia roupas é o que você pensa. Não podemos nem dar-lhe agasalhos, porque você não tem corpo para usá-los.
Outros, tão pouco afortunados, têm a roupa, mas não o tanque. Diacho! De que servem, pois não?! Ter comida sem ter fome. Mas não posso saciá-los, ninguém mais pode. E se pensa nos pássaros do céu, pensa também que nem toda asa é liberdade, que nem todo sorriso é fraterno, e que Babel se assegurou de nada fosse mais igual. Nevermore, disse o corvo.
Luz. Você não a quer. Eu sei. Eu sei como é bater no interruptor em vão, continuar cego, você, que há tanto tempo surdo ainda pensa ouvir os choques dos trovões e o repicar grave e compassado de sinos que avisam agudos sua hora de ser.
Não abram as portas, então, pobres coitados famintos de amor, no máximo os cabides balançarão com a brisa das folhas, mas você continuará de barriga vazia e de corpo frio. E essa dança vai hipnotizá-lo e encher seu peito. E esse vazio vai te trazer saudade do eco que fazia seu coração.
Eu sei, eu sei que pessoas como você perdem tudo sem a chance de voltar atrás, e sei que pessoas como eu ganham tudo sem poder dividi-lo. Mas se eu tivesse apenas um último fôlego, eu diria que fechassem os olhos e pensassem nas roupas, apenas nas roupas. Diria que é melhor trancar as portas, e não pensar mais nos cabides.
Não até que o último grão caia.

lundi 10 août 2015

Corações avulsos

Pintura de ouro
a disfarçar
Todo o vazio
que não quer mostrar
Busca fontes vivas
Para alimentar
A farsa em que não
consegue acreditar

Em mentes alheias
constrói nova imagem
Fugindo do espelho
à clara mensagem
que o faz semelhante
ao ogro selvagem
causando-lhe dor e
intensa vertigem

Eterno cretino
Eterno fingidor
Eternos covardes
Ocultos em amor.


[PS: Eu tentei terminar, G.C, quem sabe um dia dê certo.]

dimanche 19 juillet 2015

Cruzes

[o desjejum, depois de alguns meses afogada]


Inclino a cabeça para trás e, na penumbra, meus olhos delineiam a sombra dos móveis imóveis. Distingo as formas da louça atrás da porta de vidro da estante, das garrafas de vinho pelas prateleiras com o brilho metálico de seus lacres. O vidro texturado da janela me deixa trancada aqui dentro. Só tenho eu mesma em que me perder.
O silêncio é absoluto. E ainda assim, ninguém ouve.
Eu leio então palavras doces, penso nas histórias das bandas de lá e me permito um curvar de lábios. O fardo das palavras novas é trazerem em sua sombra o espectro das passadas. Ou trazê-las com tudo. Nada de novo sob o sol, nada... O passado nunca passa, Srta - é o que ele dizia. Desamasso folhas velhas, jogo-as na máquina, mas a tinta não parece capaz de fazer esse amarelo sair. Existe sabão em pó com tira-tempos?
Por trás do vidro ondulado, as grades dessa janela que me encerra se mostram cruzes e o espelho me pinta impotente. Quisera eu ter quatro mãos: duas para os pregos, duas para o martelo. Quando amanhecer, em cada cruz só se verão pipas e flores. Trevos, para os bem afortunados. É sempre assim, ninguém sabe.
A melodia me embala o corpo, me fecha os olhos e me leva rodopiando por salões invisíveis. O rodar é infinito, o círculo vem como a metáfora que o consciente não vê. Enquanto o mundo girar, liberdade.
Contudo, para.
Aquela saudação em dó1 que fende o chão para abismos interiores, para infernos exteriores e tudo o que não se pode suportar. Você pede que a música não pare, e quando interrompida a fênix volta a gritar com o patético pintado em cada chama com cores desarmônicas. A solidão é tola. A suficiência é deprimente. E não há ninguém as absolve.
O vidro na mesa me intriga e pergunta por que há reflexos por todo lado? Por que tanta dureza impecável, se a única lasca afiada é incapaz de tentação? Calado, devolve-me a xícara. Um mar de chá. Poderia ser qualquer algo, mais letal, mais fatal, mas não. Fecho os olhos de fumaça e engulo tudo de uma vez, fazendo da ira força, revolta contra esse fogo que não me pode queimar. Contra esse corpo que não se sabe acabar.

Porcelana contra vidro, tudo de volta ao lugar. Agora que meu tempo acaba decidi ouvir. Calada. Minhas palavras me queimavam mais do que a água escaldante desse chá, mas deixei-as voltar. Engoli-as também. Não paga a pena, paga? Violar a solidão, negar a suficiência, expor as cruzes. Quebrar o silêncio, se ninguém ouve.

lundi 13 avril 2015

"Debaixo da terra não existem coroas..."

"... - disse o esqueleto - nem de ouro, nem de espinhos."
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes, p.199.



A morte
Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.  

[Mal sabia ele...]


 Bem me disseste que a gente é para morrer e só,
pois me desculpa, porque é vão evitar o lamento: vai contigo o cavalo branco derradeiro,
não é justo que teu badalar também obedeça ao horário de verão. Tu te assumiste Ventania, e és agora inalcançável. Tavito te espera para mover no mar as ondas que lhe trarão seu amigo africano, libertará aquelas correntes, e Helena te espera para dissipar as nuvens que a prendem em sonhos.
Aproveita que agora não tens mais teu inimigo à espreita. Contra o meu eu ainda travarei
árduas batalhas. A gente é mesmo um momentinho só, coisa à toa.

Obrigada pelo bem, pelo mal, e por todas as palavras andantes.



Celebração das contradições/l
Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Auíheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Auíheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.
 

A ventania
Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.


O ar e o vento
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão, como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no vento.
Acho que foi Vallejo, César Vallejo, que disse que às vezes o vento muda de ar.
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
 

Textos de Palavras Andantes.
Eduardo Galeano 1940-2015

mercredi 25 mars 2015

TRD.2015

Tema do ano:
Amizade

"Quando todos no acampamento dormiam, Beleg apanhou seu arco e. na escuridão, matou os lobos-sentinelas, um a um, em silêncio. Depois, enfrentando enorme perigo, entraram e encontraram Túrin acorrentado pelos pés e pelas mãos e amarrado a uma árvore seca. E, em toda à volta dele, facas que haviam sido atiradas em sua direção estavam fincadas no tronco. E Túrin estava sem sentidos, num sono de enorme exaustão. No entanto, Beleg e Gwindor cortaram tudo o que o prendia e o levaram carregado para fora do pequeno vale. Não conseguiram, porém, levá-lo a distância maior do que um bosque de espinheiros pouco acima. Nesse lugar, o depuseram no chão. E então a tempestade aproximou-se. Beleg sacou sua espada Anglachel e com ela cortou as correntes que prendiam Túrin. Nesse dia, porém, o destino foi mais forte porque a lâmina escorregou quando Beleg cortava os elos e  picou o pé de Túrin. Acordou ele então num súbito estado de alerta, cheio de cólera e medo. E, ao ver que alguém estava debruçado sobre ele com uma espada desembainhada, saltou com um grito enorme, imaginando que os orcs voltassem a atormentá-lo. E, lutando com o outro na escuridão, tomou-lhe Anglachel e matou Beleg Cúthalion, pensando que fosse um inimigo.

No momento em que ficou de pé, entretanto, descobrindo-se livre e disposto a vender caro sua vida aos inimigos imaginados, estourou um forte raio acima deles. E à sua luz, Túrin viu o rosto de Beleg. Ficou então petrificado e mudo, contemplando aquela morte medonha, consciente do que havia feito. E tão terrível era seu semblante, iluminado pelos raios que dardejavam ao redor, que Gwindor se agachou no chão, sem ousar erguer os olhos. 

Nesse momento, porém, os orcs no vale foram acordados, e todo o acampamento ficou tumultuado. Pois eles temiam os trovões que vinham do oeste, acreditando que eram enviados contra eles pelos poderosos Inimigos do outro lado do Mar. Veio então um vento, fortes chuvas caíram, e torrentes jorraram das alturas da Taur-nu-Fuin. E embora Gwindor chamasse Túrin aos gritos, avisando-o de seu perigo extremo, Túrin não respondia, mas permanecia imóvel e sem chorar na tempestade ao lado do corpo de Beleg Cúthalion.

Quando amanheceu, a tempestade já passara para o leste; para o lado de Lothlann, e o Sol do outono nasceu quente e luminoso. Entretanto, certos de que Túrin tinha fugido para muito longe daquele local e de que todos os rastros de sua fuga haviam sido apagados pela chuva, os orcs partiram apressados sem maiores buscas. E de longe Gwindor os viu indo embora em marcha, pelas areias fumegantes de Anfauglith. Foi assim que eles retomaram a Morgoth de mãos vazias, deixando para trás o filho de Húrin, sentado enlouquecido e inconsciente nas encostas da Taur-nu-Fuin, suportando um peso maior do que as correntes dos orcs.

Gwindor, então ergueu Túrin para ajudá-lo a enterrar Beleg, e Túrin se levantou como um sonâmbulo. Juntos, estenderam Beleg numa cova rasa e colocaram a seu lado Belthronding, seu grande arco, que era feito de teixo escuro. Já a terrível espada Anglachel, Gwindor apanhou, dizendo que seria melhor que ela se vingasse nos servos de Morgoth do que ficar inútil enterrada. Ele também apanhou o lembas de Melian para fortalecê-lo naquelas terras ermas.

Foi esse o fim de Beleg Arcoforte, amigo fidelíssimo, o mais hábil de todos os que se abrigavam nos bosques de Beleriand nos Dias Antigos, morto pelas mãos de quem ele mais amava. E essa dor ficou gravada no rosto de Túrin para nunca mais se apagar."

[TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion,cap.XXI De Túrin Turambar]

jeudi 19 mars 2015

Imperialmente sós




"A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte.
Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça.
Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro."

 O problema não é, nem de longe, sobre toda essa inundação de virtudes inventadas, é mais sobre o quanto nos deixamos esquartejar todos os dias pela cegueira de tudo.
É sobre esse desânimo - no sentido mais profundo da palavra. É sobre sentir o estômago revirar com cada um desses rostos estranhos aos quais olhamos sem nos importar, e que somos obrigados a encarar quando queríamos apenas dizer que não, não nos conhecemos. É sobre sentir todos os dias que o tempo acabou, e correr todos os dias sem saber onde vai alcançá-lo de novo, enquanto há apenas muros à sua frente em todas as direções. Você gostaria que um buraco se abrisse em qualquer lugar, para poder abaixar a cabeça e sumir pelo mais breve dos instantes - mas não há areia para isso.
Todos os dias eu imagino meu eu daqui a dez anos. Ele observa ao redor e vê o avesso de tudo. Ele não escuta os ruídos de casa. E quando ele se olha no espelho, e sem raiva, sem tristeza, sem emoção, pergunta: onde é que viemos parar?

"Now that you've come so far, where do you go from here?
[...]
Please hold my trembling hands before I go insane all again"
-Angra, Window to Nowhere


Discurso de paraninfo de David Foster Wallace, em 2005.

 Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

[...]

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

[...]

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

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Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. [...]

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O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.