vendredi 19 décembre 2014

La Belle et la Bête


"— E você gosta daqui?
Ela olhou para ele e balançou a cabeça
Eu me sinto uma hulder.
Ele já ouvira aquela palavra na Noruega.
— Elas não são uma espécie de troll?
— Não. São seres das montanhas, como os trolls, mas vêm da floresta, e são muito bonitas. Como eu. — Ela sorriu ao dizê-lo, como se soubesse que era pálida, tristonha magra demais para ser bonita. — Elas se apaixonam fazendeiros.
— Por quê?
— Sei lá. Mas se apaixonam. Às vezes o fazendeiro percebe que está falando com uma mulher hulder, porque ela tem um rabo de vaca nas costas, ou, pior ainda, às vezes não tem nada atrás, é oca, vazia, como uma concha. O fazendeiro faz uma prece ou sai correndo, volta pra sua mãe ou pra sua fazenda. Mas às vezes o fazendeiro não foge. Às vezes ele joga um punhal por cima do ombro dela, ou simplesmente sorri, e se casa com a mulher hulder. Aí o rabo dela cai. Mesmo assim, ela é mais forte que qualquer mulher humana. E sente falta de seu lar nas florestas e nas montanhas. Nunca será feliz de verdade. Nunca será humana.
— E depois, o que acontece com ela? — perguntou Shadow. — Ela envelhece e morre com seu fazendeiro?
Ela fatiara a maçã até o caroço. Então, com um movimento do pulso, atirou o caroço num arco, de cima da encosta."





GAIMAN, Neil. Coisas Frágeis.

lundi 1 décembre 2014

Tyrius



Ele tinha pés pequenos, o nariz achatado , o corpo robusto, e trazia um largo chapéu. Nas mãozinhas, as únicas e minúsculas flores que a neve não cobria, azuis e vermelhas, e brincava com o vento que o jogava de um lado para o outro entre as pedras, apenas preocupado em não perder as flores da Donzela do Rio. Mas daquela vez ele caiu. O sol cedeu às sombras e o vento se recolheu. A água silenciou. E ele não viu mais nada.

 
PRÓLOGO

Um enorme dragão branco pairava no céu, flutuando mais silenciosamente do que o vento, que não soava mais que um sopro naquilo que era como um balão de papel navegando nas gêneses do sol nascente. Seu calor brilhava translúcido, e a ela ali mergulhava como em alvos lençóis de algodão. 
O corpo quente da terra contemplava com seus olhos cegos e respirava a suspensão do tempo, em que o céu não girava sobre si. Sem gravidades. Sem acelerações. Sem vida. Sem morte. E ansiava.
Até que sente roçarem os primeiros fios, percebe, despertando, que as engrenagens voltam, retomando seu adagio agudo. Então, abre os olhos esperando ver cometas e fogo. Não os há.

A barriga do céu fora atingida e do buraco da flecha corre seu sangue anil. Espalhavam-se dali braços desesperadas e garras que o destruíam para dentro.  Rasgado e dilacerado, o couro se esgarça e surra, perdendo as bordas como se roídas por traças invisíveis. Mas ele não sabe descer, e só consegue exibir os trapos que não pode salvar.
Seu barro árido seco duro pedia ao céu que chorasse as lágrimas que nela secaram e ela se abriu para o sal de suas grandes gotas quentes. Que nunca viriam. Dilataram-se poros e veios vindos desde o seu âmago enquanto ela chamava as flores e gritava que era passado o tempo de florescer.
Os trapos dissipados parecem incandescer e finalmente caem, sua queda dada em novelos de pequenas nuvens é um fino cristal e a chama do dragão extingue-se em neve, banha a terra de botões de gelo, queima até a necrose sua pétala rosada. Dela, que ainda não sabe chorar. E ainda o céu não chora por ela.
Só resta a água ácida desse corpo sem vida, um dilúvio que afoga sem saciar, que consome sem consolar. E a terra, faminta, permanecia infértil, apenas durando, enquanto o céu chovia despedaçado a morte azul de um dragão branco.


Nota: Créditos ao Dono do Vento http://sempreler.tumblr.com/archive, sem cujo sonho eu jamais teria tido a ideia para esse texto. E, claro, ao duende Tyrius, pelas flores. (: