mercredi 27 février 2019

PRECE

Zdzislaw Beksinski

Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que existas. E quando eu sair por essa porta, despida de todos os lados, dentro e fora, sem vestimenta ou sentimento a me cobrir, LEVA-ME. E livrai-me do mal.
Mas não só.
Peço que a distância seja sempre infinita e, o sendo, seja toda ela ainda nula. Quebra-me as pernas e prende-mas para que eu não fuja e, fugindo, queira agir, e, agindo, queira voltar a ser. Corre pela minha pele as garras do bicho mais impiedoso que encontrar, e esfrega-a até fazer visível a carne. Arranha-me a garganta e tira dela o que quer que me obstrua o fôlego. Tira dos meus pulmões esse laço apertado, que eu já não me lembro de como é me mover. Então mordisca, despedaça, desencarna-me. E, enquanto eu corro e bebo e vento nessa busca desesperada pelo respirar, fustiga-me de pedras, de uma tempestade de navalhas, para deixar escorrer tudo isso que sobra e eu não vejo.
Peço que esconda-me no inexistir para que essa distância seja tamanha que esteja além da distância. Chove-me até me derreter, e sopra para o horizonte tanto a solução como todos os seus precipícios. E mesmo a gota que descer mais fundo, manda longe. Decompõe-na e desintegra até que vento nenhum me possa encontrar. Até que eu não seja mais presença ou espaço.
Peço que não me espalhes. Que não me lances ao mar. Simplesmente me consome, desaparecendo com a minha carne e meu hálito, tapando a minha boca até que a agonia seja tamanha que eu exploda mais intensamente do que o sol ao nascer, mas tão pequena e banal e insignificantemente que mal faça barulho. Que seja esse esmorecer tão desprezível quanto o choque rotineiro dos átomos, que ninguém vê ou pressente. E que, da mesma forma, também ninguém se importe ou pergunte. Que sigam sem voltar a me procurar, para não alimentar assim os fantasmas.
Peço que, hoje, quando eu partir, sumas com as memórias. Destrói qualquer sombra. Evapora tudo. Esfarela cada detalhe para que seja menos do que sombras no espaço sideral, menos do que imagens borradas e memórias incompletas, menos do que frações de vácuo. Trata de mim até que eu seja nada. Até que eu enfim não seja.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que meu morrer seja maior do que uma simples morte. Não me decompõe na terra, apenas para, em seguida, levar-me adiante.  Não hesita e apenas me some até o nada mais absoluto. Nunca mais eu quero ouvir. Nunca mais eu quero saber do mundo. Nem dos cheiros. Nem dos movimentos. Esmorece-me para eu nunca mais sentir. Que eu não suporto esse peso da ideias em minha cabeça. Nem o peso da minha cabeça sobre os meus ombros. Ou altura dessa música que não pára, dessas vozes que não silenciam. Eu não tenho alento para esse coração, que, sendo buraco, pesa como se levasse dentro a humanidade inteira.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que arrume quem me derrame o pranto para o qual já não me resta água, quem me reencontre as palavras que fugiram para sempre e destampe tudo o que eu me calo. Alguém com mais força e com menos sentidos. Encontre mesmo alguém quem me viva, se assim preciso for. Quem me exista essa existência que eu não sei mais.
Faz o que lhe aprouver dos meus pecados,
da minha carne,
só livra-me da vida eterna.


Amém.



(reescrita de um texto de 2013)