vendredi 14 juillet 2017

Januarius

Sobre Carlottas, Christines, e um São Jorge que terminou Dragão
Lisbonne, Jan.2016


PRÓLOGO
 Tudo aconteceu muito depressa. Essa história não durou mais do que uma lua. Menos de um cinquenta avos de ano. Uma fração tão pequena e banal de tempo contendo, ainda assim, evidências que bastem do abismo entre a linhagem real habitante do Castelo Chaboureau e a plebe que rodeia seus muros.
A título de exemplo, o número de autoridades e outras realezas cujas mãos apertaram o povo-de-dentro ultrapassa em muito o número daqueles que o povo-de-fora jamais verá mesmo pela televisão ou pelos jornais. Tudo isso graças a frações ínfimas de tempo como essa. Cada um desses sete dias, cada uma dessas semanas acrescenta-lhes uma experiência de anos e é isso, muito mais do que genes e sangue, o que distingue os Chaboureanos de seus pares. É isso o que faz dos Chaboureanos Chaboureanos.
Sangue quente e mente fria. Potencial e realidade. Contrastes. Paradoxos.
Ei-los.
 
ATO I
Nesse espetáculo acontece algo um tanto peculiar: entra primeiro todo o elenco, que toma assento nas poltronas e cadeiras e mira as solenes cortinas vermelhas que escondem, sobre o palco, seu público. Este aguarda de pé, com ares de estrela e confiança de reis, que essas cortinas se abram completamente e que os aplausos dos atores findem.
A primeira cena se inicia, e à ela seguem-se outras e mais outras. Declamações um tanto inexpressivas, muitas vezes mal ensaiadas. Parecem não saber muito de coração. Evidentemente, nada inesperado quando se colocam no palco amadores despreparados para a peça que representam.
Do lado oposto, assentados e mirando-os impassíveis, raramente deixando-se levar pelas rimas pobres dos pretensos artistas, os verdadeiros atores apenas aplaudem, polidos e discretos quais Christines, as Carlottas extravagantes sobre o palco.
Ao final, porém, hão todos de convir: o desafio é fraco. Chega a ser injusto.
As Carlottas podem deter holofotes, mas é conhecimento de todos que apenas as Christines cantam de verdade. Um observador não necessariamente atento perceberia a discrepância entre a afinação de quem fala do palco e de quem fala das poltronas desse teatro.
As prima donnas não foram escaladas para encenar, hoje - concluem todos. Ficaram assentadas as verdadeiras realezas.
Cada uma um São Jorge, de lança em riste e cavalo branco selado, ávido pela batalha.

 
ENTREACTO
 As cortinas descem, para ambos os lados. O desapontamento para os desejosos de brandir sua lança ainda um pouco versus o alívio dos outros já muitas vezes atingidos.
Sobre os figurantes no palco, dir-se-á que na próxima encenação terão trabalhado para suprir a desenvoltura que faltou a essa. Muitos gostariam de crê-lo, sim. Conhecemos, no entanto, esse bicho de viseiras que é o humano, e sabemos mais provável ser não terem reparado nos olhos feridos dos espectadores, e ter-lhes passado desapercebido o ceticismo na voz das Christines que os contemplavam. Nunca aprenderão que seus títulos não servem de máscara quando na platéia não há amadores.
Basta, aqui, de figurantes. Ponhamo-los de lado, que é hora de retomar o fio dessa história, e na cena seguinte eles não entram.
 
ACTO II
Essa parte começa na penumbra de um camarim silencioso. Distingue-se entre os vultos objetos diversos: cabides, frascos, uma capa que pende, a forma abobadada do que deve ser a saia rodada de um vestido de gala. Cada movimento faz cintilar pequenas vidrarias e brilhantes. E ao longo dos rodapés emergem formas volumosas do que sejam mais provavelmente as caixas dos instrumentos calados.
Esse ato não acontecerá sob holofotes.

O chão agora é todo dos atores - os reais. De cara limpa e em mangas de camisa. Não há púlpitos no plano de fundo. Eles se aglomeram, piscam-se momentaneamente, e num repente explodem em dessincronia perfeita.
Cada voz incita o despertar - literalmente. E elas não são poucas. Levam os punhos às portas, que ressoam quais tímpanos. O bater de suas centenas de pés ecoa, deixando sua marca na terra como no ar. Talvez seja a lua invocando os lobos dos homens.
Talvez.
 
A matilha se aproxima e se afasta, deslizando, saltando, bailando, voando. Desenfreada. E nas tocas profundas onde ainda é inverno, ela grita o verão contra os animais a hibernar. O que denunciou a fome, no primeiro ato, deita aqui ao lixo pratos cheios e frescos. O que denunciou a desigualdade, no primeiro ato, veste-se aqui de mãos escravas. O que denunciou a tirania, no primeiro ato, massacra aqui com sua voz os silêncios ao redor. Na calada da noite ele veio para violá-los impiedosamente.
Onde toda aquela polidez? Onde todo aquele clamor pela ordem? Hibernem, quem sabe, nas tocas, como os animais que ficaram.
EPÍLOGO
É noite de chuva e o jardim da praça Eduardo VII estende-se como ao infinito, seu extremo invisível através da parede de neblina que borra mesmo as lâmpadas dos postes mais próximos. Por trás dela, lá na distância, sei erguer-se imponente um Marquês, tão herói deste lado do mar como foi vilão do lado oposto. Do mesmo modo, as paredes da Assembléia celebram em cores tropicais as bestas que um dia repudiaram.
Talvez seja cada ser humano uma pequena biblioteca, daquelas Joaninas. Na fotografia fica registrado o esplendor: ouro nos pulsos, ouro nos pescoços, ouro nos ombros, ouro nas frontes. Ao passo que ignoradas ficam as comichões dos morcegos que alçam vôo tão logo as luzes se apagam.

Ainda aqui do muro, um cavalo surge reluzente do abismo de sombras sobre o qual pendem meus pés; ele galopa no silêncio da meia noite e traz em seu lombo São Jorge. Pergunto-me se não é efeito da névoa, mas quando se afasta, dando-me as costas, e vejo-o integralmente, descubro espinhos nas costas que me dá, e vejo uma cauda escamosa onde deveria ver seu cavalo branco. Um vento estufa seu estandarte e reconheço nele a divindade do Castelo. O deus porteiro.
Janus.
Desço do muro e, sob a chuva, retorno calmamente à minha toca.




.*.*.*. 

Nota: Em Janeiro de 2016, a universidade em que eu estava estudando organizou a École d'Hiver, uma semana de palestras, visitas e debates de cunho político, desta feita em Lisboa. A contrapartida pedida aos alunos era uma apenas: um registro da semana para figurar no livro que montam anualmente, com os relatos das Écoles d'Hiver de cada ano. Fotos, desenhos, poemas, contos, ou apenas uma descrição em poucas linhas da atividade favorita da semana. Pois bem, este foi o meu.