vendredi 5 octobre 2018

Queimada



Sobre a arte de enxergar.

Um dia, nos tempos idos da escola, aprendemos uma tal de "queimada rei-e-rainha". Era uma variação do tradicional jogo de Queimada, onde, em vez de eliminar todo o time adversário, bastava queimar uma única pessoa: aquela eleita - por irônico que seja! - pelo grupo para ser a realeza. Dessarte, uma coisa era indiscutível: o time todo se arriscava na linha de fogo para proteger o seu escolhido.
E, assim, no início, era o caos.
Se, em um primeiro momento, os jogos não eram que uma desordem de corpos lançando-se uns contra os outros na frente da bola, fazendo-se escudos entre o rei e o inimigo, pouco a pouco uma lógica começava a emergir. Alguns times se dispunham em círculos cujo centro era o rei. Alguns preferiam montar suas barreiras nas bordas de seu território. Outros, ainda, selecionavam a dedo os seus "sacrifícios", os atiradores, e cada outra peça daquele grande tabuleiro.
O primeiro insight, àquela época, se deu ao perceberem ser o sigilo uma defesa maior do que qualquer muralha ou exército: um monarca desconhecido, observaram, era um monarca fora da mira. E a natureza das estratégias começa a mudar. Os times se distribuíam no campo de modo a deixar o centro da defesa ambíguo, com duas ou três pessoas. Ou então dividiam por completo a atenção do inimigo, entrando em campo com dois reis e duas formações independentes. Nesse estágio de aprimoramento das estratégias, começava a ganhar peso o fator comportamento: um grito, um olhar assustado, uma boca meio aberta, sobrancelhas franzidas. Qualquer coisa que finalmente denunciasse às hostes inimigas que elas haviam chegado perigosamente perto do alvo.
E assim seguia o ciclo de insights, mise en scène, e ajustes, acompanhado de perto por análises atentas dos novos planos do adversário, e seguido, por fim, do desmantelamento de ambas as estratégias. Concomitantemente, os times mudavam. A cada troca, os soldados aprendiam a conhecer as táticas preferidas de seus potenciais futuros inimigos. A vantagem era a falha na muralha: todos eram espiões de si próprios.
Nesse baile de manobras e máscaras, uma única posição não parecia digna do rei: a de peão. Não se poderia protegê-lo disfarçadamente na linha de frente. O risco é grande demais.
Ou é mesmo?
Enquanto cerravam os olhos buscando ver através das barreiras e desvendar a lógica confusa do invisível-visível no lado oposto, pouquíssios - ou, mais comumente, nenhum - desperdiçavam suas energias nos tais peões. Incontáveis vezes, na velocidade de sucessão dos ataques e contra-ataques, enquanto o time todo voava avançando e recuando sobre seu território freneticamente, eu me lembro de ficar lá, de apenas me manter, os pés desenhando a linha fronteiriça. Não raro, senti na pele o vento quente de um lance inimigo - sem, no entanto, ser seu alvo. Nem uma vez.
Aquilo me intrigava.
E intriga.
Me intrigava que a melhor forma de me esconder era colocar-me ao alcance de seus dedos, era lançar-me discretamente à sua frente. Me intriga que dêem tanta atenção ao que lhes foge que acabem por perder de vista o óbvio.
Todos parecem ter olhos apenas para o que não vêem. Foi essa a minha gloriosa conclusão naqueles dias de uniformes sujos, cadarços enrolados e joelhos esfolados. Foi isso tudo o que consegui formular enquanto buscava palavras em que coubessem minhas inquietações. Concluí que chaves e cadeados fazem péssimos silêncios. Concluí muitas coisas.
Mas, mesmo assim, eu era só uma criança com palavras bonitas sobrando e tentando me livrar delas onde pudesse - até mesmo nos jogos da escola.
Hoje, muitos anos depois, do alto dos meus centenários milenares, eu enxergo todos os escudos forjados nas minhas palavras e concluo que havia ainda o que ser concluído. Assim, fui-me paulatinamente despindo. E, hoje, nua, de cara limpa frente à multidão, eu finalmente fiz do meu monarca invencível. À mostra, faço-me invisível. E, portanto, inqueimável.