samedi 25 juin 2011

Baú de Memórias


"... e quanto a ser alguém capaz de dizer de facto e exatamente o que se sente ou pensa,

imploro-te que não acredites, não é porque não se queria, é porque não se pode.
[...] É só o que podemos fazer, falar, falar..."


Desde o início, eu nunca me esqueceria de seus óculos. Óculos grandes de lentes amareladas. Nunca me esqueceria de sua boca pequena e do “batom 24h”. De seu cabelo curto e sempre cheio de bobes, do lenço sempre na cabeça. Da sua elegância e do seu incansável bom humor. Abrindo o portão, nada mais importava até que estivéssemos em seus braços, mergulhados naquele abraço apertado e quente onde o universo poderia caber com folga. Aquele abraço inexplicávelmente aconchegante onde desejávamos permanecer sem jamais ter de desatar os braços. Era Abraço de Vó.

Desde o início, eu sabia, ficaria era o som de sua risada... De sua voz já pouco me lembro, mas daquela risada... Ainda posso ouvi-la. Posso ver seus ombros balançando em sua gargalhada gostosa e alta, aquela gargalhada que fazia qualquer um rir também. É que, no fundo, nada mais importaria enquanto ela estivesse ali. Ela que, sozinha, enchia a casa. Ela que, sozinha, era companhia de todas as formas: colega, amiga, prima, tia, mãe, vó... Engraçado como, mesmo hoje, não posso distinguir os cinqüenta anos que nos separavam: ela era como uma de nós. Vestíamos seus sapatos, passávamos seus batons, ouvíamos suas histórias, cozinhávamos e conversávamos antes de dormir sem perceber o quão extraordinário aquilo era. Ela não tinha medo de ser, e faria o que quer que pensasse certo, desde que, com aquilo, pudesse fazer alguém sorrir. E por isso não haveria tristeza ou escuridão, porque saber que ela estava ali mudava tudo, fazia algo crescer por dentro, algo que proibia qualquer indiferença, e que dissiparia qualquer mágoa ou medo. Perto dela, tudo era mágico, mágico de uma forma que palavra alguma poderá conter, apenas porque nem mesmo em todas elas caberia toda a imensidão daquele mundo, só nosso, existindo simplesmente porque ela estava ali – fazendo-o real. Aquele mundo a que chamávamos Casa de Vó.

Desde o início... ah, como me esqueceria de seu jeito? De andar, de olhar... Seu jeito de chamar-nos para perto batendo nas pernas, de puxar-nos para o seu colo sem que pensássemos em desviar, afinal, o buscaríamos de qualquer forma, não precisávamos de convite. Ali estávamos sempre aquecidos e protegidos, seguros de qualquer coisa – mesmo sem saber de quê. Aquele colo morno, irresistível como Colo de Vó.

Perto dela aprendi que respeitar não é temer. Que a educação não precisa vir amarrada à discrição ou ao silêncio. Naquele pequeno universo ao seu redor nós éramos livres, bem vindos a qualquer momento, sem receios, podendo ser quem quiséssemos. Podendo ser apenas nós. Porque, sabíamos, não importa o que houvesse, ela sempre estaria à nossa espera com um sorriso sincero, um abraço apertado, e um cheirinho gostoso de algo no forno.

Desde o início... eu nunca imaginei que ela não estaria ali...

Quando crianças, o mundo se nos apresenta como algo imutável, com cheiro de eternidade. Acho que não era bem assim... Felizes de nós, que tínhamos você. Felizes de nós, porque para você sempre haveria tempo para novos planos, para novos sonhos. Antes de você, nunca me havia passado pela cabeça que as coisas pudessem chegar a um fim. Eu acreditei que poderíamos fazer outro dia aquilo que, de cada vez, o tempo nos impedia de terminar. Acreditei que sempre haveria mais festas na escola, mais bolinhos de chuva, mais cabaninhas, e até mesmo mais orações antes de dormir. Eu acreditei que sempre poderia te ver mais uma vez.

Mas antes que eu percebesse, antes de poder entender o tamanho daquilo, eu abri o portão e não vi um abraço do outro lado. O seu cheiro estava ali, mas não adiantava correr pelas portas e abri-las todas... porque eu não te encontraria, não é? E eu soube que aqueles dias jamais me sairiam da cabeça e que, ao pensar neles nos próximos anos, tudo se faria silêncio de repente.

Ô Vó... Não sei que vento te levou. Não sei o que sentir por ele ou como chamá-lo. Só sei que ele ainda passa por aqui, vez por outra... E que, quando ele bate, traz consigo aquela sensação esquisita: Mágica e distante. Quente e irreal. É engraçado que s pessoas tenham a terrível mania de diminuir tudo aquilo que perdem ou deixam ir. Eu mesma já não sei o que havia de diferente e que me fazia gostar tanto. Ainda assim, lá no fundo, sempre que penso nas festas da escola, em sua voz no escuro do quarto, ou nos tais óculos amarelos, algo se contorce e aperta, e eu sinto que, por algum motivo, aquilo era especial. Era algo que jamais terei de novo. Algo único.

Era felicidade.



"... as palavras não dizem o que deveriam, são de mais, são de menos,
peço-lhe que me desculpe."


(Jangada de Pedra, José Saramago, p. 115 e 106)



dimanche 12 juin 2011

μετάνοια ; - Metanóia

  Das três coisas que os chineses dizem não voltar atrás, a segunda é a palavra pronunciada. Você pode acrescentar por cima quantas quiser, mas jamais poderá desdizê-la.
  Pois gestos impensados podem derrubar mundos.
  E transformam laços em fitas soltas.
  E transformam abraços em acenos.
Transformam risadas leves em sorrisos inseguros.
Transformam expectativa em desesperança.
Transformam desejos em desilusão.
Transformam cada frase num lamento;
todo sentimento em arrependimento...
 ...e medo.
Medo de perder.
Medo de ferir.
Medo de não voltar.

E tudo isso por uma palavra.
Uma sentença.
Uma condenação.
Um golpe.
Uma palavra...