jeudi 24 novembre 2016

Deixa Ela Entrar...


o 1° dia
Ele era alto e esguio quando o vi pela primeira vez, recortado contra a luz que entrava pela porta. Eu era um verme enrolado sobre si próprio atrás de estantes velhas, num canto da parede. Seu primeiro toque me paralisou e apavorou, mas então ele me ergueu e me fez caminhar até a cama.
Eu não adormeci. Eu sumi.

o 32° dia
Eu não sei há quantos dias despertei, ou por quantos eu dormi, mas ele estava aqui, com seus olhos escuros sobre os meus. Ele ainda está aqui. E eu finalmente juntei coragem:
- De onde você surgiu?
- Convidaste-me, não te lembras? Tu me chamas há tempos.
- Você vai embora?
- Depende de ti.
Mas eu apertei seus dedos longos e negros nos meus.
- Não. Fica.
E desapareci outra vez.

o 70° dia
Eu gosto de quando ele me abraça e me põe a cabeça no colo e me cobre os olhos com os seus. Eu não gosto de quando ele se move, e então eu vejo de novo. A luz que aqui entra é cada vez mais branca, mais fria, mais morta. Ela me penetra os olhos como lâminas, e às vezes dói tanto que nem o calor dele me convence a permanecer ali. Mas isso, admito, tem ficado raro.

o 80° dia
O silêncio.
Uma vez me disseram que os melhores amigos são aqueles com quem o silêncio não é estranho. Nós, nós podemos ficar literalmente horas a olhar nada, enrolados nas cobertas. A parede vazia, o vidro no teto, os azulejos manchados. Quando deixamos o ar de fora entrar, é comum ver as mechas negras do seu cabelo escorregando em frente aos meus olhos em nossas miragens silentes. Eu por vezes acho que é a mim que ele olha, e não ao mesmo nada que eu, mas não tenho coragem de me virar para saber.

o 97° dia
A cada vez que isso acontece, de eu jazer de olhos cobertos em seu colo, eu sinto esse desejo de esticá-lo como um lençol e puxar sua pele ao meu redor até me isolar como numa placenta. Eu o diria, no entanto, que não me parisse de novo.
- Ainda não, criança.
É tudo o que me diz.

o 119° dia
Quando estou com ele, o tempo não existe. Nosso dia pode durar sete horas, e nossa noite pode durar muitas dezenas de dias. Tomamos o café da manhã às 2, jantamos às 15, dormimos às 9... bem, eu não diria que ele dorme.
Eu adoro esse nosso mundo particular. Mas ele ainda se recusa a me dissolver.

o 153° dia
No início eu temia fechar os olhos. E se eu sumir de novo? Estarei só ao despertar? Eu não queria que ele fosse apenas uma miragem. Agora eu tenho cada vez menos medo do sono, pois ali somos um. São ainda as lâminas que me atemorizam. O sono não mais.
E ele? Ele é minha única certeza. Meus dias agora têm cor, cheiro, peso. Peso. Até o ar é denso e tangível, me preenchendo quando eu respiro. E eu respiro.

o 164° dia
A luz. Os sons. As cores. Eu não consigo mais mais ter de deixá-lo por esses demônios que me dilaceram os olhos e todo o resto.Despertar dói. Por que ele não vê? É só em seus braços que eu fico em segurança. Quente como uma lareira. E ainda ele insiste.
“Hoje, não, criança.”

o 196° dia
Luz!
Eu abri os olhos...
eu estou em um oceano branco...
em um oceano tão frio...
será que ele
finalmente
me permitiu me
afundar?
não não deve ser seria tudo negro e quente e seguro e ele não deixaria que as luzes me ferissem assim e
As luzes enfraquecem. Ouço algo se movendo. Mas me prenderam.
Escuro.

o 199° dia
Penumbra. Mas o mesmo frio. Ainda não compreendo porque meu corpo está atado e o ar é tão leve. Um vulto... será? Não. Uma mulher. Cabelos vermelhos. Pergunto por ele.
- Quem?
- Ele estava comigo. Vocês com certeza o viram.
- Não. Só havia você quando te trouxemos. E um senhor no andar de baixo, mas creio não ser ele quem busca.

o 202° dia
Outra mulher. Cabelos azuis.
- Ele não veio me ver?
Nada. Insisto.
- Porf...
Ela pára por um átimo.
- Ainda não, criança.
E saiu, acendendo às luzes.

o 203° dia
Desta feita, um homem. Furioso. Rosna a todos os cantos.
- Contenha essas luzes se não o quiser de volta.
Chamo-o.
- Ele não veio?
Ele está me olhando, curioso. Sinto-me uma criança prestes a ouvir algo desagradável enquanto ele se senta ao meu lado.
- Escute. Não há bichos-papões aqui. Está tudo bem e você não precisa de tantas luzes. Velas, lanternas, lâmpadas... basta. Isto tem de parar. Creia-me, o mundo é seguro, andar sem ver seus pés é seguro, sobretudo, não acenda todas as luzes - eu estou começando a me perder em seus olhos verdes - Ele voltará se você continuar como uma fogueira no deserto, e, se ele voltar, você não estará bem.
Abri a boca. Nenhum som está saindo.

o 205° dia
Vejo pelo canto dos olhos a enfermeira de cabelos vermelhos.
- Por que ela acendeu as luzes, a de cabelos azuis, se aquele senhor disse ser mais seguro na penumbra?
- ...
- O qu...?
- Não temos enfermeiras de cabelos azuis.
Ela apagou a luz antes de sair, e eu posso jurar ter visto dois pontos escuros antes que ela o fizesse. Então um sibilo, nos ouvidos, dentro do meu crânio, começa a ressoar.
- Ainda não, criança.