mercredi 25 mars 2015

TRD.2015

Tema do ano:
Amizade

"Quando todos no acampamento dormiam, Beleg apanhou seu arco e. na escuridão, matou os lobos-sentinelas, um a um, em silêncio. Depois, enfrentando enorme perigo, entraram e encontraram Túrin acorrentado pelos pés e pelas mãos e amarrado a uma árvore seca. E, em toda à volta dele, facas que haviam sido atiradas em sua direção estavam fincadas no tronco. E Túrin estava sem sentidos, num sono de enorme exaustão. No entanto, Beleg e Gwindor cortaram tudo o que o prendia e o levaram carregado para fora do pequeno vale. Não conseguiram, porém, levá-lo a distância maior do que um bosque de espinheiros pouco acima. Nesse lugar, o depuseram no chão. E então a tempestade aproximou-se. Beleg sacou sua espada Anglachel e com ela cortou as correntes que prendiam Túrin. Nesse dia, porém, o destino foi mais forte porque a lâmina escorregou quando Beleg cortava os elos e  picou o pé de Túrin. Acordou ele então num súbito estado de alerta, cheio de cólera e medo. E, ao ver que alguém estava debruçado sobre ele com uma espada desembainhada, saltou com um grito enorme, imaginando que os orcs voltassem a atormentá-lo. E, lutando com o outro na escuridão, tomou-lhe Anglachel e matou Beleg Cúthalion, pensando que fosse um inimigo.

No momento em que ficou de pé, entretanto, descobrindo-se livre e disposto a vender caro sua vida aos inimigos imaginados, estourou um forte raio acima deles. E à sua luz, Túrin viu o rosto de Beleg. Ficou então petrificado e mudo, contemplando aquela morte medonha, consciente do que havia feito. E tão terrível era seu semblante, iluminado pelos raios que dardejavam ao redor, que Gwindor se agachou no chão, sem ousar erguer os olhos. 

Nesse momento, porém, os orcs no vale foram acordados, e todo o acampamento ficou tumultuado. Pois eles temiam os trovões que vinham do oeste, acreditando que eram enviados contra eles pelos poderosos Inimigos do outro lado do Mar. Veio então um vento, fortes chuvas caíram, e torrentes jorraram das alturas da Taur-nu-Fuin. E embora Gwindor chamasse Túrin aos gritos, avisando-o de seu perigo extremo, Túrin não respondia, mas permanecia imóvel e sem chorar na tempestade ao lado do corpo de Beleg Cúthalion.

Quando amanheceu, a tempestade já passara para o leste; para o lado de Lothlann, e o Sol do outono nasceu quente e luminoso. Entretanto, certos de que Túrin tinha fugido para muito longe daquele local e de que todos os rastros de sua fuga haviam sido apagados pela chuva, os orcs partiram apressados sem maiores buscas. E de longe Gwindor os viu indo embora em marcha, pelas areias fumegantes de Anfauglith. Foi assim que eles retomaram a Morgoth de mãos vazias, deixando para trás o filho de Húrin, sentado enlouquecido e inconsciente nas encostas da Taur-nu-Fuin, suportando um peso maior do que as correntes dos orcs.

Gwindor, então ergueu Túrin para ajudá-lo a enterrar Beleg, e Túrin se levantou como um sonâmbulo. Juntos, estenderam Beleg numa cova rasa e colocaram a seu lado Belthronding, seu grande arco, que era feito de teixo escuro. Já a terrível espada Anglachel, Gwindor apanhou, dizendo que seria melhor que ela se vingasse nos servos de Morgoth do que ficar inútil enterrada. Ele também apanhou o lembas de Melian para fortalecê-lo naquelas terras ermas.

Foi esse o fim de Beleg Arcoforte, amigo fidelíssimo, o mais hábil de todos os que se abrigavam nos bosques de Beleriand nos Dias Antigos, morto pelas mãos de quem ele mais amava. E essa dor ficou gravada no rosto de Túrin para nunca mais se apagar."

[TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion,cap.XXI De Túrin Turambar]

jeudi 19 mars 2015

Imperialmente sós




"A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte.
Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça.
Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro."

 O problema não é, nem de longe, sobre toda essa inundação de virtudes inventadas, é mais sobre o quanto nos deixamos esquartejar todos os dias pela cegueira de tudo.
É sobre esse desânimo - no sentido mais profundo da palavra. É sobre sentir o estômago revirar com cada um desses rostos estranhos aos quais olhamos sem nos importar, e que somos obrigados a encarar quando queríamos apenas dizer que não, não nos conhecemos. É sobre sentir todos os dias que o tempo acabou, e correr todos os dias sem saber onde vai alcançá-lo de novo, enquanto há apenas muros à sua frente em todas as direções. Você gostaria que um buraco se abrisse em qualquer lugar, para poder abaixar a cabeça e sumir pelo mais breve dos instantes - mas não há areia para isso.
Todos os dias eu imagino meu eu daqui a dez anos. Ele observa ao redor e vê o avesso de tudo. Ele não escuta os ruídos de casa. E quando ele se olha no espelho, e sem raiva, sem tristeza, sem emoção, pergunta: onde é que viemos parar?

"Now that you've come so far, where do you go from here?
[...]
Please hold my trembling hands before I go insane all again"
-Angra, Window to Nowhere


Discurso de paraninfo de David Foster Wallace, em 2005.

 Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

[...]

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

[...]

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

[...]

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. [...]

[...]

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.

dimanche 1 mars 2015

Willkommen




 EMERGE - Marjolein Caljouw. 2014.


As portas há tanto tempo
mantidas trancadas
finalmente correm
Que não se diga no antigo aposento
estarem completadas
as folhas em branco
Talvez seja o peso do relento
as paredes tomadas
dos medos que cospem
A fazer dele um porto cinzento
A que almas fatigadas
Vão aos solavancos.

A casa vem com
Sete estrelas
Juras de amizade
Fogo na lareira
E abrem-se as portas com
Muitas janelas
Vozes de saudade –
Cena agoureira
Mas vêm os instantes com
Um toque singelo
Um sopro, uma inverdade
E a pergunta primeira
Revelando as cáries de
Um muro podre
Um coração incerto
Uma adaga certeira

As decisões ludibriam
E faz opaco o medo
As bestas que resguardam
E as certezas desviam
Pintam de segredo
Os que as amedrontaram
Vem, porém, cedo ou tarde
Rastros fundos e negros
Punhais que esburacam
A nova dura capa
Fachada de enredos
Que não se encontraram

Vão será todo em branco
Quando não houver palavras

Que não se diga que
Uma folha
Jamais foi prova de livro
Que não se creia que
uma pétala
jamais foi foto do arvoredo
Que não se veja em
Um telhado
A certeza de um abrigo
Que não se engane com
abraços
Que não fazem, sós, um amigo

As portas há tanto tempo
Mantidas abertas
Finalmente morrem
Que não se diga no novo aposento
Estarem recobertas
As almas sem manto
Talvez seja o peso desse tempo
As linhas incertas
Que os pés interrompem
A fazer o perdido alento
E a vista cansada
Esgotarem o pranto

Que não se diga que há
Felicidade
Que não se espere mais
sentir saudade
Que não se creia nunca
Na bondade
Que não se aposte
Em possibilidades
Que não há nada
Senão malas rotas
Para desfazer
E algumas páginas
A perecer.