lundi 25 novembre 2019

Rubis

Roses in Pantheon,
photo by Emily Quinn

Mais outra minúscula pedra chove em silêncio, com seu rubro cintilando discretamente diante dos meus olhos. E outra. E outra. E outra ainda. Volta e meia ele entra por minha porta e lança-me mais delas, e eu me pergunto se seria possível cobrir o chão com esses rios vermelhos que lhe escorrem pelos dedos. Eu sei por que ele o faz: os rubis têm essa serenidade em seu rolar - e ele o sabe. E lança mão deles para me confortar. Ele. Não direi amá-lo. Odiá-lo tampouco. É difícil exprimir isso que se retorce em mim diante de seus olhos. É difícil até mesmo sentir - ou entender. Ele, que levou-me o ouro. Ele, que me exaure, fazendo-me verter em seus braços todos os cristais que eu já não aguento transformar. Eu, que não tenho Rumpelstiltskin que me faça o trabalho; eu, que não tenho mãos de Midas, e pego-me escorregando pelos estilhaços cristalinos soprados pelo chão. Mas, então, houve esse dia, um dia em que ele veio com uma gentileza incomum, tomou-me as mãos e guiou-me os passos numa lentidão calma para aquele lugar onde eu pude vislumbrar um brilho frio de pratarias. Ele fez-me olhar até perceber o encanto escondido em sua frieza, essa frieza de gelo que colocamos sobre as nossas feridas para que deixem de pulsar. Nessa cadência, ele, por quem não sei o que sinto, ensinou-me a mitigar a dor - aquela que nasce com ele próprio - e a debelá-la, fazendo enfim brotarem os rubis. Naquele dia, descansei como há muito não havia. Olhei-o no rosto fundo e eu soube lhe sorrir. Eu e meus lábios manchados de rubis.

lundi 2 septembre 2019

Sobre as três vezes em que encontrei a Morte, e a vez em que ela finalmente me levou



Ou: Uma morte em três atos
Do ensaio Mini People in the Jungle,Dawid Planeta



Tongue
You thrusted yours in me
Not seeing the blood you drew out
Or the poisoned air you locked in
You shaped it as a mask
to force upon my face
and shield yourself
from an incomprehension you said was mine

The walls you needed yourself
you build them around me
And I saw myself alone
Till I didn't see anything anymore

and it was the first time I died
  
Finally
- I thought to myself -
It has taken longer than I expected


Love
You crawled under my skin
and scratched inside my veins
savouring my blood with a sharp smile
You came hidden under deep eyes
          and shiny hair
You never knew I would see
right through your prince charming disguise
and unveil your claws

I spat on your face
and sent you running back
- in pieces
my pieces

You failed.
I was stronger than you
I am always so strong
And that was why I died a second time
          ('and that is why you'll keep dying', you answered)

Finally
- I thought to myself -
It has taken longer than I wished for

*

Bravery
You dared me
You showed me all the gold
at the end of the rainbow
and made out of it the perfect costume
You broke me and rejoiced over my shatters
You never warned me about the ticket tolled in blood

You took me to the end
You allowed me to the pot
You lead me to my doom
My arrogant mocking smile still on
as you silently kissed my breath away
and laid me cold and lifeless
among golden coins
under that colorful arch
and those brilliant drops of rain

That was the last time I died

Finally
- I thought to myself-
It has taken longer than I was ready for

mardi 23 avril 2019

"Daemones Effugate"*

Daemones ampleximini
Nikolina Petolas, Faded



Tudo começou quando aprendi a ler e, lendo, aprendi a reconhecer diferentes vozes. Até que eu aprendi a escrever, e foi assim que eu comecei a ouvir a minha própria voz.

Escrevendo, eu aprendi o verdadeiro sentido de ter uma língua - essa, que é única de cada um e, quase sempre, inalcançável. Escrevendo, eu finalmente tornei-me capaz de entender essa minha língua. Estranha, alienígena, intraduzível. E, agora, eu e minha língua nos entendemos como apenas nós podemos, numa sincronia inigualável, embora opaca para qualquer terceiro. Ai, os terceiros! Se ao menos pudessem dar-se conta de tudo o que se enganam! Mas seria esperar demais...

Escrevendo, eu fui fazendo mergulhos tão, mas tão profundos – embora zonas abissais ainda virgens aguardem-me em profundos ainda mais profundos -, que, malgrado o contentamento passageiro que talvez encontre no comunicar-me, esses pontos de encontro entre a minha língua e a do outro parecem-me agora sempre rasos demais. Insossos demais. Falsamente transparentes demais. E, perdida nesse oceano de gentes cegamente crentes na transparência, dominar minha própria língua permitiu-me dominar-me a mim própria. Até o momento fatídico em que, escrevendo, eu, um dia, descobri-me a exorcizar demônios.

Mas esses espaços vazios aborreciam-me, irritantes como um zumbido no silêncio do sono. Tantos exorcismos fizeram de mim calabouço em um campo aberto, e os muros que caíram no lado de cá os meus olhos passaram a enxergar no lado de lá. A minha compreensão me dera liberdade. Mas liberdades não se sustentam quando só se pode caminhar nos corredores das prisões dos outros.

Eu continuava só.

Escrevendo, eu despencara no paradoxo que é  povoar-me isolando-me mais, aproximar-me distanciando-me ao infinito, libertar-me sufocando-me em um labirinto inescapável. Eu pude descobrir a resposta a muitos enigmas, apenas para dar-me conta de que as chaves dos tesouros que eu descobri não estavam em nenhum lugar dos arredores. Longe demais do meu alcance.

Então ergui com minha língua um espelho, e tornei-me a voz que me replica quando murmuro no escuro. Um ciclo vazio, no final das contas: tornar-se mais para ser menos. Até que, escrevendo, vi-me face a face com uma nova verdade: eu já não tinha ganas de me exorcizar os soi-disants demônios. Não mais. Que, demoníacos ou não, diferentemente de todo o resto, meus demônios e eu guardávamos esse pequeno algo em comum – o algo mais crucial: meus demônios e eu, nós falávamos a mesma língua.

Rendi-me.

E foi dessa forma que, exorcizando, escrever ensinou-me a desistir dos exorcismos. Como Aladdin ao Gênio da Lâmpada, eu libertei os demônios todos, e trouxe-os para mais perto. Menos como fantasmas, mais como amigos. Menos como o tal diabo a aproveitar-se de nossos vazios, mais como o Grilo Falante a lembrar-me do que é essencial.

Escrevendo, permiti-me ser alguém que eu não sabia até escrever-me. Escrever rompeu meu casulo. Escrever empurrou-me precipício abaixo. Escrever desmistificou as grandezas. E, hoje, quando olho para o lado antes vazio da minha cama, eu enxergo meus demônios dormindo comigo. E está tudo bem.

~:~




* Mateus 10, 8

PS: Feliz Dia Mundial do Livro.

mercredi 27 février 2019

PRECE

Zdzislaw Beksinski

Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que existas. E quando eu sair por essa porta, despida de todos os lados, dentro e fora, sem vestimenta ou sentimento a me cobrir, LEVA-ME. E livrai-me do mal.
Mas não só.
Peço que a distância seja sempre infinita e, o sendo, seja toda ela ainda nula. Quebra-me as pernas e prende-mas para que eu não fuja e, fugindo, queira agir, e, agindo, queira voltar a ser. Corre pela minha pele as garras do bicho mais impiedoso que encontrar, e esfrega-a até fazer visível a carne. Arranha-me a garganta e tira dela o que quer que me obstrua o fôlego. Tira dos meus pulmões esse laço apertado, que eu já não me lembro de como é me mover. Então mordisca, despedaça, desencarna-me. E, enquanto eu corro e bebo e vento nessa busca desesperada pelo respirar, fustiga-me de pedras, de uma tempestade de navalhas, para deixar escorrer tudo isso que sobra e eu não vejo.
Peço que esconda-me no inexistir para que essa distância seja tamanha que esteja além da distância. Chove-me até me derreter, e sopra para o horizonte tanto a solução como todos os seus precipícios. E mesmo a gota que descer mais fundo, manda longe. Decompõe-na e desintegra até que vento nenhum me possa encontrar. Até que eu não seja mais presença ou espaço.
Peço que não me espalhes. Que não me lances ao mar. Simplesmente me consome, desaparecendo com a minha carne e meu hálito, tapando a minha boca até que a agonia seja tamanha que eu exploda mais intensamente do que o sol ao nascer, mas tão pequena e banal e insignificantemente que mal faça barulho. Que seja esse esmorecer tão desprezível quanto o choque rotineiro dos átomos, que ninguém vê ou pressente. E que, da mesma forma, também ninguém se importe ou pergunte. Que sigam sem voltar a me procurar, para não alimentar assim os fantasmas.
Peço que, hoje, quando eu partir, sumas com as memórias. Destrói qualquer sombra. Evapora tudo. Esfarela cada detalhe para que seja menos do que sombras no espaço sideral, menos do que imagens borradas e memórias incompletas, menos do que frações de vácuo. Trata de mim até que eu seja nada. Até que eu enfim não seja.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que meu morrer seja maior do que uma simples morte. Não me decompõe na terra, apenas para, em seguida, levar-me adiante.  Não hesita e apenas me some até o nada mais absoluto. Nunca mais eu quero ouvir. Nunca mais eu quero saber do mundo. Nem dos cheiros. Nem dos movimentos. Esmorece-me para eu nunca mais sentir. Que eu não suporto esse peso da ideias em minha cabeça. Nem o peso da minha cabeça sobre os meus ombros. Ou altura dessa música que não pára, dessas vozes que não silenciam. Eu não tenho alento para esse coração, que, sendo buraco, pesa como se levasse dentro a humanidade inteira.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que arrume quem me derrame o pranto para o qual já não me resta água, quem me reencontre as palavras que fugiram para sempre e destampe tudo o que eu me calo. Alguém com mais força e com menos sentidos. Encontre mesmo alguém quem me viva, se assim preciso for. Quem me exista essa existência que eu não sei mais.
Faz o que lhe aprouver dos meus pecados,
da minha carne,
só livra-me da vida eterna.


Amém.



(reescrita de um texto de 2013)