mardi 20 février 2018

Contagem Regressiva

E de tanto deixar para trás
Nada mais sobrou

Ouço passos no piso de cima. A porta do banheiro é trancada logo ao lado. Sob a porta me infiltra o quarto a luz do corredor – e as sombras dos passos a cruzá-lo. Na sala, alguém mastiga um fast food qualquer, amassando os papéis enquanto o faz, e lambuzando a tela do celular com os dedos sujos de um molho que não sei qual é. Há uma parede entre nós. Duas. E, ainda, eu posso vê-lo. Ele lambe os dedos. O celular vibra. Ele corre as mãos pela lateral das calças, a cabeça meio inclinada, e o procura por sob as almofadas amarelas. Quem sou eu na cabeça dele? Eu me pergunto... Quem é ele que não sou eu?
Outro pedaço meu se vai com o último ruído dos papéis pardos do lanche.
Agora, nada mais se move.
As frutas de plástico brilham na bandeja laranja da mesa de centro. O vermelho da textura das paredes grita um grito abafado pela penumbra, assombrado pelo vão escuro de todas as cinco saídas daquela sala – como se ela flutuasse no meio do nada e qualquer janela fosse uma passagem para uma queda infinita.
Posso pular? Pergunto, tomando o cuidado de não deixar que me ouça. Aperto os lábios e mordo as bochechas. Na poltrona, o estofo estampado – com ares de pop art – destoa do estilo classic da sala. De frente para ele, ali, de pé, no escuro, posso sentir cada engrenagem se preparando para um novo parto. Sai o eu que lambuza os dedos, nasce um eu em uma dimensão qualquer, de batom escarlate, que escuta Your Heart is as Black as Night com a cabeça jogada para trás. É tarde da noite, e ele se levanta, fechando a porta atrás de si. Engolido pelo vácuo, ele vai fumar sozinho pelas ruas, ou no canto de um bar barato. No sofá, atrás de mim, vejo esse outro que se levanta e sobe as escadas de ferro que o nada esconde. Sem chinelos, de camisola, ele agora sente frio na varanda enquanto escreve poesias com a caneta que acaba de puxar do cabelo.
O relógio faz o som estridente de quem cruza de novo o doze. Cada um desses vácuos já me engoliu uma vez. Ou diversas. Não sei dizer. Enquanto não descubro, continuo aqui. De pé. Sozinha. Encurralada entre vácuos. E aguardo.

Aguardo, um dia, a coragem de saltar.


"alguma vez                                 .
alguma vez talvez
eu irei sem ficar-me                    .
eu irei como quem se vai."
(Alejandra Pizarnik)

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