lundi 2 septembre 2013

Tabacaria

"neste lugar solitário
faz a conta doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida"
(Jose Paulo Paes)





Tudo previste. De algum modo, sempre soubeste de tudo. O que será que eu seria hoje? O que dirias? Que aprendi? Que te ouvi? Olha para mim, hoje: escrava do relógio. Ao menos não maldigo... No entanto, depois de tudo, eu não pude e dei ouvidos - e quis rupturas no silêncio.
Fraca. Quebrei-me em tantos pedaços que não sei mais contar. E matei tantos deles, deixei tantos de mim para trás...
Mesmo assim... E se eu dissesse que, de alguma maneira, em uma pequena face desse imenso e multifacetado prisma, eu estou bem? Que dessa pedra tosca, opaca e desbotada sobrou um lado no qual, sabe, eu sou de algum modo feliz? Orgulhar-te-ias de mim?
Não irresponsável, não exagerada, não insuportavelmente. Feliz. Apenas. Quase sem perceber. Limpa. Estou finalmente respirando, entende? Como uma ilha. Como a torre na ilha. Quebrada, desbotada e abandonada. De pé.
E se eu dissesse que é uma felicidade triste, e ainda assim bela e arejada? Que seu riso é silencioso, mas agradável, que é fraco, mas encantador? Que ele força-me os lábios, mas que mos adoça?  E que ela me olha com ternura, compaixão e... amor? E que ela me protege de todas as minhas velhas dores, e me esvazia de cada sangramento? Virias comigo?
E se cada sangramento fosse eterno? Ajudá-la-ia?
E se a única falta for desconhecê-la? Ficarias satisfeito por mim?
Sangraria comigo? ... voaria comigo?
Indago se me podes ver. Aqui, tristemente feliz. Mas não, querido. Não. Está tudo girando. As coisas subitamente estão pulsando, pungentes.
É que a dor é tão grande.
Ela é tão silenciosa que nem grito, e me está assustando. Cravo na peles as unhas, gemendo, apertando os olhos. Percebes?
Não, eu não estou bem. Diz-me o que fazer. Diz-me... Que farias? Soubesses, mander-me-ias ser feliz? Mandar-me-ias arriscar? Pudesse ser tudo posto a perder, insistirias? Fica, Silêncio, ao meu lado. Quieto e presente. Pesa. Que diz agora? Dir-me-ias que tente?
É que dói tanto... Dói.
Não quero que volte na noite. Não há águias aqui para voarmos. Quero que digas apenas. Será que a cada vez mais doerá? Será que a cada vez mais sangrará? Sempre mais, e mais, e mais... Será que vou sobreviver? Não quero, porém, sobreviver. Não assim. Diz-me, então, queres que tente de verdade?
"Às vezes, só às vezes, eu queria não precisar morrer."
É que... de repente... a dor é tão grande.


"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."
(Saramago)

Retrato do Poeta Quando Jovem
(Saramago)
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
 No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

4 commentaires:

  1. Ah, seu texto é quase trilha sonora pra agora. Se queria esfaquear com isso, conseguiu, bem vagarosamente aliás.

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    1. Devo entender que fiz um bem ou um mal? rs.

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    2. haha fez bem como sempre... mesmo que tenha machucado, numa época propícia pra isso, talvez até mais genial por isso haha.

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  2. É incrível como você consegue dizer o que eu às vezes queria muito, mas por alguma razão não consegui expressar em palavras. Quando comecei a ler esse texto, pensava: nossa, é bem assim mesmo. À medida que avançava eu me perguntava: como isso é possível ? Claro que, não sei se para mim significou o mesmo para você enquanto o fez, mas neste momento você disse tudo o que estou ou pelo menos, tenho sentido. Parabéns, adorei!

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