lundi 25 février 2013

Escarificação

"[...] por isso em vez de dizer a senhora não me conhece, achei melhor, mesmo sem água, de boca seca e salgada, achei melhor me guardar trancado diante dela, como alguém que não retivesse nada, e na verdade eu não tinha nada pra dizer a ela; e ela queria dizer alguma coisa, [...] mas tudo o que pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas na louça antiga do seu ventre."
Lavoura Arcaica, pág. 64-5



O dia inteiro foi de afobamento. Um começar sem terminar, um fazer tudo ao mesmo tempo, um não sei aonde ir. No entanto, não foi o meu medo. Dessa vez, foi o deles, que não queriam ver, nem fechar os olhos, que não queriam partir e nem podiam ficar. "... as trincas na louça antiga do seu ventre" - e nunca houve descrição mais precisa.
Papéis. Cartões. Assinaturas. Horários. Camiseta. Caneca. Convite. Festa. Foto. Anda, anda, anda. Até que então a compreensão parte e dá lugar a um rude "você está indo ao lugar errado". Então voltamos. É... incrível, talvez?, que o remorso trazido por mistos de compaixão e pena talvez seja o único a reabastecer a paciência em poços há muito secos. Ao menos por instantes. Até que se dá conta que nada, nada, é justificativa.
Tudo bem, de qualquer forma. "Hoje pode", não é? Uma bala para a criança que for ao médico e se comportar. Eles o fizeram, e ganham então um cartão "vale-tudo". Só por hoje, só por hoje... E parece que sou eu a mãe, a vê-los tomando distância e murmurando comigo mesma:
- Eles vão aprender, eles vão aprender.
Ela me aperta o braço, os dedos muito firmes entre os meus. Ele mal me dirige o olhar, o rosto sempre virado enquanto fala. E fala, e fala. Olhos baixos, olhos altos, olhos distantes. Mas nunca meus. Os verdes cada vez mais límpidos, fazendo-se transparentes como água. Os pretos como um abismo cada vez maior. E nunca intransponível, eu sei tudo o que se passa ali. Aquilo que esconde e que quer se mostrar, que faz questão, de alguma maneira, de se fazer notado.
Abraço. Riso. Conversa. Abraço. Choro. Volta. Rodeio. Retorno. Abraço. Enfim os fios escorregam pela mãos até lhes deixarem as chaves. São as pessoas erradas dizendo adeus. São os lados errados da calçada. Sou eu errada, ficando quando deveria partir.
Apesar de tudo, hoje, sou eu quem acena da porta.Tranco o portão em suas costas, vendo-os de longe. E parece que sou eu a mãe, a vê-los partindo amuados e apaziguando-me a mim mesma:
- Um dia eles vão entender que é preciso. Com o tempo eles aprendem.


25/Fev/2013. 21h03min

1 commentaire:

  1. E eles sentirão muito a sua falta, assim como talvez, em uma tarde dessas com quietude lá fora, seu coração aperte e você sentirá a falta deles também...
    Fica bem ^^
    bons ventos pra você, a onde for!!!!!

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