lundi 13 février 2017

Criogenia

A casa nova jaz na esquina da próxima quadra, na maior das avenidas, atrás daquele mato alto. Ali dentro há sonhos estuporados. Plastificados. Os planos eternos se esfacelam, infestados de cupins. Muito me admira vê-la ainda de pé.
Mais me admira dizê-la ainda 'nova'.

Toda a minha existência tem sido que uma experiência de quase-morte. De longe, vislumbro-me, e aquele corpo não é meu, aquela voz não conheço, e quando foi que ela aprendeu a sorrir assim?
A casa nova mudou de donos. Eu mudei de casa nova. Tantas vezes. E há tempos que me pergunto em qual delas eu fiquei.

Ou em qual delas eu parti.

Aqueles sonhos continuam em algum lugar
anacrônicos
deslocados
irônicos
destroçados
A cada dia fica mais difícil fazer-lhes uma ponte para o agora. O aqui. Ou qualquer algo mais aparentemente real. O tempo todo eu os ouço chamado, e todas as noites, antes de dormir - ou talvez, em vez de dormir -, eu fecho os olhos e tento adivinhar-lhes a direção. Bobagem. Sempre tive um senso medíocre de direção, e um ouvido ainda pior. Então, deitada, eu faço a única coisa de que tenho sido capaz:
eu velo
e sinto muito por  eles.
Sinto muito pois, dentre todas as pessoas, chamam por aquela que não sabe ouvi-los. Eu, que mal sei de minha própria voz, e a quem cada palavra soa como dardos, e pesa como aquela última pena sobre o camelo da história.

Antes de entrar no meu quarto, eu tiro os sapatos. Uma vez dentro, eu lavo as mãos. Ali, tudo são baús, invólucros, sobrescritos. Tudo amarrado, etiquetado, catalogado, qual museu. Na porta, os avisos:
não suja
não toca
não assopra
Por precaução:
não respira
Quer saber?
Não entra.
Fica aí. Fora. Que o tempo é um bicho indomável, tu sabes. Arisco. Traiçoeiro. Daí aquele outro aviso, logo ali:
Proibida a entrada de tempos.
Eles fariam estragos por aqui.

Mas eu vou ficando velha, e já não me sobram energias para polir tantos bibelôs e velharias, já não me sobra esmero para insistir quando eles insistem em não ficar novos em folha. Para além disso, não desvendei ainda como plastificar-me a mim própria, e, a cada vez que cruzo esa porta, as casas me reconhecem menos. Devo ser-lhes, hoje, apenas a silhueta de uma sensação, aquele "parece alguém que eu conheço" proferido logo antes de olvidar o estranho que acaba de nos cruzar o caminho. Não nos reconhecemos, eu e eu. E há tanto tempo.
Não sei mais dizer quando nos chamamos pelo  nome pela última vez.

A verdade é que sou eu um museu que me entedia visitar-me. Há muito não vêm itens novos nesses coleções. Aqueles sonhos, paralisados, não vão despertar, e é demais respirar também por eles. Me viessem agora as Parcas, não precisaria eu de três perguntas. Com uma única chance pendendo de seu fio mágico, seria contundente:

Só me diz a direção da saída.

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