Zdzislaw Beksinski |
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje eu peço que
existas. E quando eu sair por essa porta, despida de todos os lados,
dentro e fora, sem vestimenta ou sentimento a me cobrir, LEVA-ME. E
livrai-me do mal.
Mas não só.
Peço que a distância seja sempre
infinita e, o sendo, seja toda ela ainda nula. Quebra-me as pernas e prende-mas para que eu não fuja e, fugindo, queira agir, e, agindo,
queira voltar a ser. Corre pela minha pele as garras do bicho mais impiedoso
que encontrar, e esfrega-a até fazer visível a carne. Arranha-me a garganta e
tira dela o que quer que me obstrua o fôlego. Tira dos meus pulmões esse laço
apertado, que eu já não me lembro de como é me mover. Então mordisca, despedaça, desencarna-me. E, enquanto eu corro e bebo e vento nessa busca desesperada
pelo respirar, fustiga-me de pedras, de uma tempestade de navalhas, para deixar
escorrer tudo isso que sobra e eu não vejo.
Peço que esconda-me no inexistir para
que essa distância seja tamanha que esteja além da distância. Chove-me até me
derreter, e sopra para o horizonte tanto a solução como todos os seus
precipícios. E mesmo a gota que descer mais
fundo, manda longe. Decompõe-na e desintegra até que vento nenhum me possa
encontrar. Até que eu não seja mais presença ou espaço.
Peço que não me espalhes. Que não me
lances ao mar. Simplesmente me consome, desaparecendo com a minha carne e meu
hálito, tapando a minha boca até que a agonia seja tamanha que eu exploda mais
intensamente do que o sol ao nascer, mas tão pequena e banal e insignificantemente
que mal faça barulho. Que seja esse esmorecer tão desprezível quanto o choque
rotineiro dos átomos, que ninguém vê ou pressente. E que, da mesma forma,
também ninguém se importe ou pergunte. Que sigam sem voltar a me procurar, para não alimentar assim
os fantasmas.
Peço que, hoje, quando eu partir,
sumas com as memórias. Destrói qualquer sombra. Evapora tudo. Esfarela cada
detalhe para que seja menos do que sombras no espaço sideral, menos do que
imagens borradas e memórias incompletas, menos do que frações de vácuo. Trata
de mim até que eu seja nada. Até que eu enfim não seja.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje
eu peço que meu morrer seja maior do que uma simples morte. Não me decompõe na
terra, apenas para, em seguida, levar-me adiante. Não hesita e
apenas me some até o nada mais absoluto. Nunca mais eu quero ouvir. Nunca mais eu quero saber
do mundo. Nem dos cheiros. Nem dos movimentos. Esmorece-me para eu nunca mais
sentir. Que eu não suporto esse peso da ideias em minha cabeça. Nem o peso da
minha cabeça sobre os meus ombros. Ou altura dessa música que não pára, dessas
vozes que não silenciam. Eu não tenho alento para esse coração, que, sendo
buraco, pesa como se levasse dentro a humanidade inteira.
Tu que me ouves, de algum lugar, hoje
eu peço que arrume quem me derrame o pranto para o qual já não me resta água, quem
me reencontre as palavras que fugiram para sempre e destampe tudo o que eu me
calo. Alguém com mais força e com menos sentidos. Encontre mesmo alguém quem me
viva, se assim preciso for. Quem me exista essa existência que eu não sei mais.
Faz o que lhe aprouver dos meus
pecados,
da minha carne,
só livra-me da vida eterna.
Amém.
(reescrita de um texto de 2013)