Daemones ampleximini
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Nikolina Petolas, Faded |
Tudo começou quando aprendi a ler e, lendo, aprendi a reconhecer
diferentes vozes. Até que eu aprendi a escrever, e foi assim que eu comecei a ouvir
a minha própria voz.
Escrevendo, eu aprendi o verdadeiro sentido de ter uma
língua - essa, que é única de cada um e, quase sempre, inalcançável. Escrevendo,
eu finalmente tornei-me capaz de entender
essa minha língua. Estranha, alienígena, intraduzível. E, agora, eu e minha
língua nos entendemos como apenas nós podemos, numa sincronia inigualável,
embora opaca para qualquer terceiro. Ai, os terceiros! Se ao menos pudessem
dar-se conta de tudo o que se enganam! Mas seria esperar demais...
Escrevendo, eu fui fazendo mergulhos tão, mas tão profundos
– embora zonas abissais ainda virgens aguardem-me em profundos ainda mais
profundos -, que, malgrado o contentamento passageiro que talvez encontre no comunicar-me,
esses pontos de encontro entre a minha língua e a do outro parecem-me agora
sempre rasos demais. Insossos demais. Falsamente transparentes demais. E, perdida
nesse oceano de gentes cegamente crentes na transparência, dominar minha
própria língua permitiu-me dominar-me a mim própria. Até o momento fatídico em
que, escrevendo, eu, um dia, descobri-me a exorcizar demônios.
Mas esses espaços vazios aborreciam-me, irritantes como um
zumbido no silêncio do sono. Tantos exorcismos fizeram de mim calabouço em um
campo aberto, e os muros que caíram no lado de cá os meus olhos passaram a enxergar
no lado de lá. A minha compreensão me dera liberdade. Mas liberdades não se
sustentam quando só se pode caminhar nos corredores das prisões dos outros.
Eu continuava só.
Escrevendo, eu despencara no paradoxo que é povoar-me isolando-me mais, aproximar-me distanciando-me ao infinito, libertar-me sufocando-me em um labirinto inescapável. Eu pude descobrir a resposta a muitos
enigmas, apenas para dar-me conta de que as chaves dos tesouros que eu descobri
não estavam em nenhum lugar dos arredores. Longe demais do meu alcance.
Então ergui com minha língua um espelho, e tornei-me a voz
que me replica quando murmuro no escuro. Um ciclo vazio, no final das contas: tornar-se mais
para ser menos. Até que, escrevendo, vi-me face a face com uma nova verdade: eu
já não tinha ganas de me exorcizar os soi-disants
demônios. Não mais. Que, demoníacos ou não, diferentemente de todo o resto,
meus demônios e eu guardávamos esse pequeno algo em comum – o algo mais
crucial: meus demônios e eu, nós falávamos a mesma língua.
Rendi-me.
E foi dessa forma que, exorcizando, escrever ensinou-me a
desistir dos exorcismos. Como Aladdin ao Gênio da Lâmpada, eu libertei os
demônios todos, e trouxe-os para mais perto. Menos como fantasmas, mais como
amigos. Menos como o tal diabo a aproveitar-se de nossos vazios, mais como o
Grilo Falante a lembrar-me do que é essencial.
Escrevendo, permiti-me ser alguém que eu não sabia até
escrever-me. Escrever rompeu meu casulo. Escrever empurrou-me precipício abaixo.
Escrever desmistificou as grandezas. E, hoje, quando olho para o lado antes vazio
da minha cama, eu enxergo meus demônios dormindo comigo. E está tudo bem.
~:~
* Mateus 10, 8
PS: Feliz Dia Mundial do Livro.