E de tanto deixar para
trás
Nada mais sobrou
Ouço passos no piso de cima. A porta do banheiro é trancada
logo ao lado. Sob a porta me infiltra o quarto a luz do corredor – e as sombras
dos passos a cruzá-lo. Na sala, alguém mastiga um fast food qualquer, amassando os papéis enquanto o faz, e
lambuzando a tela do celular com os dedos sujos de um molho que não sei qual é.
Há uma parede entre nós. Duas. E, ainda, eu posso vê-lo. Ele lambe os dedos. O
celular vibra. Ele corre as mãos pela lateral das calças, a cabeça meio
inclinada, e o procura por sob as almofadas amarelas. Quem sou eu na cabeça
dele? Eu me pergunto... Quem é ele que não sou eu?
Outro pedaço meu se vai com o último ruído dos papéis pardos
do lanche.
Agora, nada mais se move.
As frutas de plástico brilham na bandeja laranja da mesa de
centro. O vermelho da textura das paredes grita um grito abafado pela penumbra,
assombrado pelo vão escuro de todas as cinco saídas daquela sala – como se ela
flutuasse no meio do nada e qualquer janela fosse uma passagem para uma queda
infinita.
Posso pular? Pergunto, tomando o cuidado de não deixar que
me ouça. Aperto os lábios e mordo as bochechas. Na poltrona, o estofo estampado
– com ares de pop art – destoa do
estilo classic da sala. De frente
para ele, ali, de pé, no escuro, posso sentir cada engrenagem se preparando
para um novo parto. Sai o eu que lambuza os dedos, nasce um eu em uma dimensão
qualquer, de batom escarlate, que escuta Your
Heart is as Black as Night com a cabeça jogada para trás. É tarde
da noite, e ele se levanta, fechando a porta atrás de si. Engolido pelo vácuo,
ele vai fumar sozinho pelas ruas, ou no canto de um bar barato. No sofá, atrás
de mim, vejo esse outro que se levanta e sobe as escadas de ferro que o nada
esconde. Sem chinelos, de camisola, ele agora sente frio na varanda enquanto
escreve poesias com a caneta que acaba de puxar do cabelo.
O relógio faz o som estridente de quem cruza de novo o doze.
Cada um desses vácuos já me engoliu uma vez. Ou diversas. Não sei dizer.
Enquanto não descubro, continuo aqui. De pé. Sozinha. Encurralada entre vácuos.
E aguardo.
Aguardo, um dia, a coragem de saltar.
"alguma vez .
alguma vez talvez
eu irei sem ficar-me .
eu irei como quem se vai."
(Alejandra Pizarnik)