GAIMAN, Neil. Sandman 43, Brief Lives III, p.26 |
- 'When I dream, sometimes I remember how to fly', said Chloe.
- 'When I dream, sometimes I remember how to die.', I answered.
****
Os quatro
entraram pela lateral da sinagoga, recebendo no rosto uma lufada de ar quente.
Ela, a ruiva de coque e com a manta de lã no sobre a blusa bordô, entrou
primeiro e sentou-se em um dos bancos vazios de madeira, dobrando seu casaco
preto sobre o colo. O rapaz de longos cabelos castanhos e jaqueta de couro
sentou-se ao seu lado. Os outros dois ainda estavam de pé no corredor, e os
quatro cochichavam sob o olhar de esguelha da velha trajada de preto e de
cabelo despenteado que rezava debruçada sobre o encosto do banco.
- O que a gente
faz agora? - disse o rapaz.
- Shh! Fala
baixo, João! - cutucou-o a moça ruiva.
- Agora vocês
oram. - rosnou a voz aguda da velha.
A garota de
cabelos castanhos e de lenço xadrez cobria a boca com as mãos, sem fôlego e
tentando não rir, enquanto o rapaz no banco olhava ao redor e continuava
falando:
- Mas eu estou
dizendo! Escuta só, parece um bando de cachorros gemendo.
Fez-se silêncio.
A moça ruiva
corou.
- Eu não
acredito. Vá lá pra fora. A-g-o-r-a! Você perdeu a noção?!
De um instante
para o outro, todos no lugar olhavam-no, frios e inexpressivos.
- SAIA DAQUI!
SAIA DAQUI! - Berrava a velha.
Os três saíram
pela porta dos fundos, mas a ruiva continuava sentada, olhando para baixo.
Demorou-se ali ainda um pouco, observando. Quando saiu, tomou a mesma direção
que eles, rumando para os fundos, mas, vendo-os reunidos de pé na escadaria,
apenas contornou-os de longe e esgueirou-se pelo portão, sozinha. Percebeu ter
deixado o casaco para trás, mas preferiu não entrar ali mais uma vez. Puxou as
mangas vermelho escuras da blusa para cobrir as mãos, já empalidecendo pelo
frio, e saiu andando contra o vento. Não
fora um bom primeiro dia de passeio, fora? Não, nem um pouco.
Na calçada
oposta, um casal desce a rua, todo de branco, com calças e blusas largas e
golas extravagantes. Havia listras de um amarelo berrante nas calças de um
deles, e o outro trazia luvas vermelhas de bolinhas e o rosto pintado. Bem à
frente, no topo da rua, um outro grupo: três pessoas também vestidas de branco
e roupas largas com frisos e marcas em cores extravagantes.
Jovens. Pensou enquanto seguia.
Ela já terminava
de subir a rua, mas meneou a cabeça com um sorriso impotente e deu meia volta.
- Jovens. -
Repetiu. Dessa vez em voz alta.
Entra no pátio
da sinagoga pelo portão lateral e dirige-se às escadas do fundo, tendo tempo
apenas para perceber a confusão de braços e murmúrios e vultos apressados. De
algum modo de que não se dera conta, uma corrente branca e cheia de cores se
fechava em torno do lugar. Seus amigos estão para fora. Ela está para dentro.
Pelo corredor
ainda não fechado entre aquela corrente humana cujos rostos não pode ver e as
paredes, ela corre, e dá a volta até encontrar aberta uma pequena porta cinza e
descascada. Antes de se virar para lá, ela olha para trás, e por uma longa
fração de instante ela percebe os olhos sob uma das máscaras, uma lisa e
brilhante – olhos frios, enquanto os dela já ardem, avermelhados, sem perceber
que choram. Ela sabe que ele sorriem. E corre.
É um quartinho
estreito e escuro o cômodo em que ela se fecha. Tateando sobre panos
empoeirados, não demora a tocar a parede oposta, com um riso nervoso de alívio.
Ela espera.
Os sons de
passos pesados já se dissiparam.
E ela espera.
Há pequenos
rasgos na sua calça, na altura da coxa, e ela se pergunta como pode ter sido
atingida ali.
E espera.
Brinca com os
dedos nos rasgos da calça enquanto tenta, cismada, refazer seus movimentos até
ali.
E espera.
Ela sabe que
está encurralada.
E espera.
Nos seus
ouvidos, seu coração soa quais tambores de guerra.
E espera.
Então um feixe
da fraca luz da noite a encontra.
E ela não espera
mais.
Pela fresta de
uma entrada de cartas, um par de olhos a encara. Sorrindo.
- Abre aí, pra
gente, meu amor.
Ela não se move,
e apenas observa enquanto a fresta volta a se fechar e os barulhos de golpes
começam. Nesse momento a luz repentina a cega.
Ela não se
lembrará de nada depois disso.
****
- As unhas... as
unhas, as unhas, é para ninguém saber. – Ela olhou para cima, tendo puxando
distraidamente um pedaço de unha pendurado no dedo do pé.– Sshhhh!
Ela está sentada
no chão, fechada, de um lado, por uma parede cor de abóbora, e do outro, por um
par de colchões colocados de pé, por sobre os quais se debruça um rapaz
comprido de rosto magro.
Ele roça o dedo
de leve pelo ombro dela, onde há um rasgo profundo, enquanto ela continua
respondendo a um questionário que ninguém mais lhe faz.
- Não! Não mexa
nele. – E sussurra, olhando as manchas vermelhas no colchão sujo e acariciando
o ombro, espalhando mais sangue pelo braço. – Eu preciso dele para saber o
caminho de casa. Da minha casa. Pra saber. E... Sim, sim, sim. A-ha. A-ha. Sim.
- ela repete, meio aérea, e sorrindo, soltando pequenas gargalhadas que são
como soluços. E então seu rosto fica sério. - Sim. Os pregos, os pregos são pra
eu não me casar. – Ela olhou para cima de novo, e o sorriso dela, naqueles
lábios pintados de vermelho, era lindo.
Ela gira as mãos
em frente aos olhos enquanto fala. Ao longo de cada dedo há dois pregos,
cruzados sob a pele em direções opostas, e ela roça por eles as pontas dos
dedos com certo carinho. Nesse momento, ele corre os dedos pelas ondas
vermelhas do cabelo dela, e passa as mãos de leve em sua cabeça.
- Muito bem. É
isso mesma, querida. Você é incrível. - ela sorri, olhando para ele, com
orgulho. - Mas agora estamos quase acabando, não é? Eu preciso ir embora.
Eles se encaram
em silêncio por um instante, e então, sem tirar os olhos dos olhos dele, ela
morde o canto dos lábios, tímida.
- Mas... eu
queria mais um corte. Só mais um. Você podia fazer... Só mais um. Um cortinho.
Não vai doer.
- Não, meu bem.
Minha parte acabou. Mas eu vou te deixar um presente.
- Você vai me
dar uma das suas tesouras? Eu gostaria de tesouras… tesourinhas, pra eu brincar
- ela sussurra, baixando os olhos.
- Isso, meu
amor. Eu vou sair por aquela porta, agora, e você vai ficar aqui, brincando
quietinha, não é?
- Sim, eu quero
brincar. Brincar. Só uma tesourinha. Uma só. – Sem conseguir dobrar os dedos,
ela aproxima uma mão da outra.
Ele a observa
pelo instante de silêncio que passa por eles.
- Eu vou te dar
um bisturi, querida.
Seu rosto
distraído pelos pregos, com mechas de cabelo confusas sobre os olhos, se abre
em um sorriso de inocente deslumbre, radiante que era como o sol nascente,
naquela hora em que o céu é um mar fervente de lava e nuvens. – Um bisturi?! -
E fica a fitá-lo sem perder o ar sonhador dos olhos ou o sorriso inocente da
boca.
Quase sem se
mover, ainda debruçado sobre os colchões encardidos, ele puxa do bolso de trás
das calças uma lâmina curta, de cabo meio curvado, todo de metal. - Pegue aqui,
meu bem. - Ela procura ajeitar as mãos ao redor do cabo e puxa-o para si. Seus
olhos brilham.
- Eu vou ficar
brincando, agora. Eu adoro bisturis. Sim. Você disse que eu adoro, não é? Porque
é, mesmo, eu adoro. Olha… um bisturi… Eu vou…
À porta, o homem
volta a vestir sua máscara, coloca de novo a calça branca por cima do jeans e
lança um último olhar para trás. Vê ali um quadro paradisíaco, pintado todo em
neve e sangue, e um rosto lindo e sereno emoldurado por ondas de sangue e
cabelo. Seus olhos marejaram.
Prestes a fechar
a porta, ele também sorri.
- Que coisa
linda, meu amor. Que coisa mais linda.
E segue descendo
o morro lentamente, até ser engolido pela escuridão.
Com um pequeno
tremor de emoção, ela havia corrido a lâmina com firmeza lucida pelo pescoço,
abrindo ali um outro par de lábios, escarlates, que derramam beijos de sangue
pelo seu pescoço e até o seu decote.
No rosto, ele
vira não um sorriso de delírio ou de inocência, mas a beleza perturbadora de um
sorriso da mais genuína felicidade.
"Deep in the cell of my heart I will feel so glad to go..."
(The Smiths, Asleep)