"A
verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte.
Diz respeito
a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria
cabeça.
Diz respeito
à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na
obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre:
"Isto é água, isto é água."
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia
depois do outro."
O problema
não é, nem de longe, sobre toda essa inundação de virtudes inventadas, é mais
sobre o quanto nos deixamos esquartejar todos os dias pela cegueira de tudo.
É sobre esse desânimo - no sentido mais profundo da
palavra. É sobre sentir o estômago revirar com cada um desses rostos estranhos
aos quais olhamos sem nos importar, e que somos obrigados a encarar quando
queríamos apenas dizer que não, não nos conhecemos. É sobre sentir todos os
dias que o tempo acabou, e correr todos os dias sem saber onde vai alcançá-lo
de novo, enquanto há apenas muros à sua frente em todas as direções. Você
gostaria que um buraco se abrisse em qualquer lugar, para poder abaixar a
cabeça e sumir pelo mais breve dos instantes - mas não há areia para isso.
Todos os dias eu imagino meu eu daqui a dez anos.
Ele observa ao redor e vê o avesso de tudo. Ele não escuta os ruídos de casa. E
quando ele se olha no espelho, e sem raiva, sem tristeza, sem emoção, pergunta:
onde é que viemos parar?
"Now that you've come
so far, where do you go from here?
[...]
Please hold my trembling
hands before I go insane all again"
-Angra, Window to Nowhere
Discurso de paraninfo de David Foster Wallace, em 2005.
Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais
velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
- Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o
outro e pergunta:
- Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais
velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe
velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais
óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada
dessa forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas
trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem
adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente
equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções
automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o
centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e
essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e
básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos
nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos
circuitos ao nascermos.
[...]
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço
em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A
pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no
meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões,
a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao
que está ocorrendo bem na minha frente.
[...]
Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um
senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem
graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que
adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na
cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes
de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de
humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria
contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e
respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela
nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente,
imperialmente sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos
concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga
idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem
grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de
formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você
acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou
dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é
chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e
depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí
lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras
naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final
de dia, o trânsito está uma lástima.
Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado,
horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música
ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas
não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles
corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu
carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas
cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há
também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os
adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os
dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim,
com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas
suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você
não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um
ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e
espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois
ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da
morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão
fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas
filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão
consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for
comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações
assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar
logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E
quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas
e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que
falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com
todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as
pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários.
Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre
parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais
feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto
fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou
posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por
desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o
clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como
tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
[...]
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a
aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão
entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas
provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês
forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão
a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher,
poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e
estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não
seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em
claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja
a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por
meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a
resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende
do que vocês queiram levar em conta. [...]
[...]
O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque
o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo
medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa
cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e
liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos
reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de
liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo
adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve
atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se
importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e
certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a
torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como
um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma.
Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo
diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou
talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à
consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na
obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre:
"Isto é água, isto é água."
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um
dia depois do outro.