lundi 13 avril 2015

"Debaixo da terra não existem coroas..."

"... - disse o esqueleto - nem de ouro, nem de espinhos."
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes, p.199.



A morte
Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.  

[Mal sabia ele...]


 Bem me disseste que a gente é para morrer e só,
pois me desculpa, porque é vão evitar o lamento: vai contigo o cavalo branco derradeiro,
não é justo que teu badalar também obedeça ao horário de verão. Tu te assumiste Ventania, e és agora inalcançável. Tavito te espera para mover no mar as ondas que lhe trarão seu amigo africano, libertará aquelas correntes, e Helena te espera para dissipar as nuvens que a prendem em sonhos.
Aproveita que agora não tens mais teu inimigo à espreita. Contra o meu eu ainda travarei
árduas batalhas. A gente é mesmo um momentinho só, coisa à toa.

Obrigada pelo bem, pelo mal, e por todas as palavras andantes.



Celebração das contradições/l
Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Auíheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Auíheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.
 

A ventania
Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.


O ar e o vento
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão, como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no vento.
Acho que foi Vallejo, César Vallejo, que disse que às vezes o vento muda de ar.
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
 

Textos de Palavras Andantes.
Eduardo Galeano 1940-2015