samedi 6 juillet 2013

Carta XIX

     Hei! Faça silêncio agora, que vou contar uma história.

     Menino... Você se lembra da época do Grande Abismo?
Naquele tempo, o Equívoco gelou a Verdade, e a Verdade abriu-se para a Dúvida. Os Homens são estranhos - daquela vez não houve conflito ou guerra. Mas talvez seja isso o que as verdades fazem, as grandes verdades. Abalam.
     Aquele ponto caiu pesado e desmoronou o Universo,quebrou-o em fragmentos fragmentados e jogou-os a tal distância que nunca a Humanidade entendeu - tampouco acreditou na re-união. Desde então, o Universo é menor, as flores brotam em silêncio e as borboletas não mais explodem. Porque som e cor foram divididos, ação e reação, corpo e alma.
     Matéria e anti-matéria.
     Mundo e não-Mundo.
     Você se lembra daquelas longas eras de escuridão? Do brilho raro dos fogos-fátuos em busca de um lar?
     Então, naqueles dias, o Medo calou o Universo e, embora envelhecesse, ele não se moveu. As pessoas não plantavam nem criavam, porque mundos mortos não podem gerar vida. Se nem As Duas Árvores resistiram à força da Dúvida, por que Universos comuns resistiriam a tanto rancor e a tanta mágoa?
     Sabe, Meu Pequeno...? Acho que as pessoas se suicidam por coisas bobas. Mundos também. Você não acha? Eu acho. Mas a luz da Paciência era de segunda ordem naqueles dias. Não as culpo. A Dor e o Terror eram intensos depois que o Vazio rodeou o Universo.
     Então, em um certo dia, a Lei precisou ser cumprida. Pura rotina. Lei Física. Nada demais. As pessoas não a notaram mais do que notam a gravidade ou a oxidação. Mas, em um dia qualquer, como se não fosse algo mais incomum do que a chuva no verão, acordaram no topo da Montanha, e de lá não vislumbraram o Vazio. Botões romperam a quietude. E borboletas explodiram.
     Você se lembra da neve? Até hoje não se sabe se caiu em todos os lugares, mas ela choveu das asas das borboletas, no topo daquela montanha, como cristaizinhos cintilantes. O Inverno chegou quente como o entardecer e as pessoas afrouxaram a tensão.
     É por isso que até hoje existe o Medo. Medo do Escuro, do Vazio. Principalmente da Verdade. E só a Verdade cura a Verdade, Menino.
     Anoitece e preciso partir, já não tenho idade para esse sereno. Fique com o livro. Eu o trouxe para você, as enfermeiras não se importarão. Guarde-o com carinho, que a História do Mundo cabe aí. Terminarei quando voltar. Ah! Antes que eu me esqueça... - e deixou uma caixinha entalhada na cabeceira antes de dar adeus com as mãos finas e enrugadas. Nela ele encontrou doces embrulhados em papel metálico, com pequenos desenhos dourados. Do fundo havia um brilho. Ele a virou, deixando o conteúdo cair em sua mão, e sorriu frouxamente para a porta fechada enquanto desenrolava nos dedos um velho fio de prata.


15.Maio.2013

PS: Aproveite seus anos mortais, Pequenino. E que sejam longos.