lundi 23 avril 2012

O Ritual


Não se trata de obrigatoriedade acadêmica. Não deveria. É, sim, uma questão de compreensão, de clareza, de criação... de magia. E o entende quem consegue ver para além de palavras difíceis e frases longas - quem acredita que cada letra tem vida, tem a paixão de quem escreve e a sede de quem a lê. Pois que cada palavra constrói uma história que bem poderia ser a sua, e o enche de um sonho daquilo que poderia ser. E eu acredito que estórias - mais do que histórias - modificam, provocam, transformam.
E não estou me referindo às suas morais.
Há cores de matizes inimaginadas acrescentadas a cada grão de poeira, e uma harmonia nos infinitos tons presentes nos pentagramas ocultos em versos. Há sabor no não dito, e uma textura única naquilo que só se experimenta através de palavras.

Todos os minutos serão a hora certa para quem sabe não poder abandonar a responsabilidade sobre aquelas vidas sem dar-lhes antes a dignidade de um final. Esse direito não lhe cabe. Pois que ler, como escrever, é ter o destino de muito nas mãos. Quem escreve traça o destino, mas é quem lê quem realmente decide por sua concretização, não havendo heresia maior do que deixar tantos caminhos inconclusos, como se um vendaval arrancasse as páginas, desfazendo as tramas e perdendo-as no ar; como um relógio cuja bateria acabou; como a respiração que cessa antes de um mergulho do qual não se tornará à superfície.
Perfura-se assim o ventre: o mundo segue adiante, enquanto para todos aqueles o tempo pára. Estagnado.
Abandonado.
Não morto, não vivo.
Abortado.
E pouco importam comédias fúteis ou amores televisivos. Importa O Livro, assim, maiúsculo, com sua essência crua e gelada, para ser derramada pelos olhos até talvez o fundo daquilo que a chamam alma. Existem ali a realidade e a poesia. A metáfora e a ironia. A rudeza e a maestria.
O contraste.
Existe uma suavidade oca a lançar laços, prendendo, hipnotizando, e terminando por enredar nessa teia do qual não se escapa. A utopia, o conto de fadas. Esse mundinho de euforia do qual os mais vazios se alimentam e com o qual se justificam, repleto de uma filosofia tola atrás da qual se escondem esses todos que não entendem o sentido e não vêem razão, precisando se agarrar a um conto de princesas que não acontecerá.
Então tudo se desmancha e enredada na teia uma nova realidade se descortina. E ali existem a violência e o grotesco enojando ao desfilar tão perto, asquerosa apontando o dedo - quando não a mão inteira -  para mostrar o que se é. A desconstrução, a tragédia. Esse mundo vil para o qual se fecham os olhos, onde o sangue é recolhido em baldes e o som de fuzis faz a trilha sonora, um lugar onde a farsa é o traje de gala e mascarar-se é ritual sagrado. Esse mundo onde vivemos todos, onde vive cada um. Uma dimensão real demais para não ser tocada e que se exibe para se tornar muitas vezes mais desprezível.
Não é mera diversão. É desafio. As páginas oferecem o ideal para que se derrube o real. Há que se ter força para receber na face o diagnóstico da inutilidade que se representa no universo, assim como para formular por si próprio o veredicto e enxergar uma sociedade condenada. Não se trata mais do romantismo superficial. Ler é um exercício de imaginação e de entendimento. Mas é também de descrença e de desilusão. Com tantas realidades caindo como flechas sobre as cabeças, o medíocre da que se habita grita não se deixando ignorar. E, desacreditando, se busca o outro, se forma o Novo Mundo. No mais íntimo ele é criado para ser habitado. Até que uma porta se abra e o traga à tona.
Mais do que desconstrução ou sonho. Descrença ou confiança. Desprezo ou tolerância. Ficções não são regra para se desvendar universos que são, que foram, que seriam. A menor oração edifica, na mente, o universo por que se anseia. Oras!, eles fornecem algo a ser agarrado, refúgio, proteção. A grandeza que não existe fora, a pureza e a verdade. Eis que então, esses pequenos amontoados de celulose sugerem algo distinto. Uma ilha única e particular, uma frágil esfera que tentam sufocar. Um universo que meras estórias proporcionaram conferindo realidade a essa grande ficção que vivemos. E sem livros, ah, sem eles não haverá sentido nesse muito de imagens que é a realidade, esse mundo morto fadado a uma existência estúpida.
 Quem sabe tudo isso seja uma bobagem não muito confiável saída de uma que se nutre dessas vidas, em cujas veias dispostas em versos correm rios letras que, muito provavelmente, rimam pareadas nos capilares. Talvez sejam apenas paixõezinhas tolas ou romantismos tão cheios de contradição que façam sentido nenhum a qualquer outro. O mais certo é ser cada palavra dessas um exagero a se esquecer e ignorar, portanto, perdão pelo palavrório inútil e terrivelmente tendencioso. Aliás, seria injusto pedir perdão, negando-me. Mas ler é contradizer-se, não? Encontrar respostas demais e coerência de menos entre elas. Ter inúmeras verdades. Não acho mesmo que a leitura é a única salvação ou algo assim, mas afinal, impossível seria dizer diferente, pois sou um pequeno nada apoiado em literatura, não posso fugir a quem sou. E que despreze quem não compreende, desconsidere toda essa torrente, esse mundo múltiplo que se anula ao se levantar, essa onda de razões desconexas e os argumentos tão suspeitos, dess(A) menina que lê.


"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."
(Fernando Pessoa) 


PS: Imagem, Book Of Books, Wladmir Kush

dimanche 1 avril 2012

As Ditas Puras


(...)
As ditaduras começam dentro de casa, da escola, dos grupos de amigos, das empresas. As rádios dizendo o que ouvir, os pais dizendo em que acreditar, os professores dizendo como agir, os chefes dizendo aonde se aliar. As relações pessoais tornaram-se pequenos contratos. Ligar-se a alguém deixa subentendido que você adequará alguma opinião, hábito ou preferência.
E que não digam que os pais só querem o melhor, os professores tentam ensinar “o mundo lá fora”, os amigos só aconselham, enfim. A verdade é que cada pessoa tenta se projetar no próximo, tenta conquistar no próximo o que não conquistou em si, tenta ser aceita ao fazer o outro acreditar. Não é pior do que a tevê, e olha que ela é vilã. As empresas e governos não abandonaram os hábitos das ditaduras de usar dos meios de comunicação para “propagandearem” a si mesmos e maquiarem suas feridas. Ao contrário, fazem-no com muito maior intensidade ao carregar a bandeira a livre expressão e da verdade, e dispensam das pessoas o trabalho de procurar melhor. Sim, porque a verdade está à solta, em algum lugar – eis a grande diferença entre os dias de hoje e os dias de repressão. Mas quando se vê tanta informação junta em um discurso tão bonito sabendo que “nesse mundo a comunicação é livre”, quem é que vai duvidar?
Nascem preconceitos mesquinhos, não os de cor ou classe. As pessoas são classificadas e usam de estereótipos para parecerem melhores: é o preconceito em relação ao conhecimento, às preferências, às crenças, à vestimenta ou ao modo de falar. Uma fala inteligente e qualquer aspecto pessoal pode ser rebaixado como ignorante ou fútil – palavras cada vez mais usadas para se sobrepor e definir o que é realmente original e de qualidade.
Entendem o ponto? Vive-se o falso liberalismo. As pessoas são discriminadas por suas escolhas. As correntes que calam não são físicas, basta usar um tom debochado e qualquer um perde a credibilidade, violentado naquilo que acredita. E as crianças já nascem nesse meio, sendo doutrinadas e ensinadas para o certo. Doutrinadas para o que falar, o que fazer, o que vestir. Doutrinadas para serem o que seus adultos são. Como chamá-las ditaduras do bem? Doutrinas. Censuras. Propaganda. Violência. Não... A diferença não é tão grande assim.

"None are more hopelessly enslaved than those who falsely believe that they are free..."